A sucessão do companheiro
O artigo 1790 do Código Civil e a declaração de inconstitucionalidade.
A sucessão do companheiro consta no artigo 1790 do Código Civil. [1]
Em grossas linhas, o companheiro falecido deixava duas massas de bens: (i) os bens onerosamente adquiridos no curso da união estável e que, normalmente, incida a meação por força do regime da comunhão parcial de bens (ver arts. 1.725 e 1.660 do CC) e (ii) os demais bens (anteriores à união estável ou adquiridos por herança ou doação).
a) Bens onerosamente adquiridos na constância do casamento. O companheiro tinha direitos sucessórios em concorrência com os descendentes do falecido. Não os havendo, a concorrência ocorria com os ascendentes do falecido. Não havendo nem descendentes nem ascendentes, o companheiro concorria com os colaterais até 4º grau do falecido. Finalmente, se o falecido não deixasse parentes sucessíveis, o companheiro herdava a totalidade dessa massa patrimonial. O companheiro em concorrência com descendentes comuns do falecido teria uma quota igual a deles. Se houvesse filhos exclusivos do falecido, o companheiro herdava meia quota (inciso II). Se houvesse ascendentes do falecido ou colaterais, o companheiro recebia apenas 1/3 da herança.
b) E quanto aos demais bens? O companheiro não tinha direitos sucessórios. Seria toda dos descendentes, na sua ausência dos ascendentes e na ausência de ambos dos colaterais até 4º grau. A doutrina majoritária e os julgados entendiam que, na ausência de qualquer parente do morto, o companheiro herdava essa massa por força do art. 1.844.
Todavia, o STF declarou tal dispositivo inconstitucional por ferir diversos princípios constitucionais, a saber: isonomia, proibição do retrocesso, dignidade da pessoa humana, proporcionalidade.
No julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários a decisão da inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil (Recurso Extraordinário 646.721 e 878.694/MG – Tema 809) foi aprovada a seguinte tese:
“No sistema constitucional vigente é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1829 do Código Civil.”
Destarte, na sucessão do companheiro deve ser observado o artigo 1829 do Código Civil. Isso implica que: a) O companheiro tem quota idêntica ao dos descendentes, com a reserva de 1/4 caso, os descendentes sejam comuns; b) Na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro herda a totalidade da herança.
O companheiro é herdeiro necessário?
Para começo de conversa, lembremos que a “legítima” é a maior limitação à autonomia no Direito das Sucessões e aos atos gratuitos de disposição que o CC impõe.
Como consequência, a existência dos chamados herdeiros necessários limita o direito de doar (disposição inter vivos) e de testar (disposição mortis causa). A legítima impõe que tais deliberações ficam limitadas à metade do patrimônio do de cujus (falecido) – art. 1798 do Código Civil.
E se a doação exceder aquilo que o doador poderia deixar por testamento? A doação será chamada de inoficiosa e nula quanto ao excedente (art. 549 do CC).
E se houver invasão à legítima no testamento? Verifica-se o instituto da redução das disposições testamentárias (artigos 1.966 e segs. do CC).
Qual o efeito prático de ser um herdeiro necessário e um herdeiro facultativo? Compreendido o que é a sucessão legitima e a consequente limitação, conclui-se que herdeiro necessário é aquele que herdeiros necessários (legitimários) aqueles que terá direito à legítima (metade disponível do patrimônio do falecido). O testamento reduzir o quinhão da legítima, não pode direcionar os bens a terceiros, salvo se o herdeiro necessário for excluído (declarado indigno ou deserdado) – artigos 1814, 1962 d 1963 do Código Civil.
Lado outro, o herdeiro facultativo é aquele que, embora na linha sucessória (art. 1.839 do CC), só recebe a herança se não existirem herdeiros necessários, nem testamento. No ordenamento brasileiro, os herdeiros facultativos são os colaterais até o 4º (quarto) grau (art. 1839 do CC). No entanto, para que o herdeiro facultativo não tenha direito à herança, basta que seja feito um testamento direcionando os bens a outra pessoa, ainda que este não tenha sido excluído (art. 1850 do Código Civil).
Mas quem são os herdeiros necessários? Segundo o artigo 1845 do Código Civil, os herdeiros necessários são os descendentes e os ascendentes e o cônjuge.
Como se vê, quanto aos efeitos, enquanto os herdeiros necessários têm pleno direito à metade dos bens do falecido, só podendo ser dela privados por meio de deserdação, os herdeiros facultativos só herdam se não houver ato de última vontade do testador em sentido contrário.
E o companheiro? É herdeiro necessário?
Após a decisão da inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil (Recurso Extraordinário 878.694/MG – Tema 809), surgiram 02 (duas) correntes doutrinárias. A primeira posição diz que o companheiro é herdeiro necessário. Por sua vez, a segunda posição compreende que o companheiro não é herdeiro necessário
Vamos entender os argumentos de cada corrente?
Corrente 1 – O companheiro passou a ser herdeiro necessário após a equiparação do STF ao cônjuge quando da decisão pela inconstitucionalidade do art. 1.790 em que pesem. Isso porque a decisão tem por fundamento a inconstitucionalidade de todas as regras que criam uma hierarquia entre os modelos familiares. A equiparação sucessória foi completa. Este é o entendimento, dentre outros, Zeno Veloso, Rolf Madaleno e Flavio Tartuce.
Corrente 2 – O companheiro não é herdeiro necessário. Tal corrente é liderada por Mario Delgado. Os fundamentos apresentados começam pela própria decisão do STF, pois a tese, segundo o autor citado não foi ampla, mas limitada à inconstitucionalidade do artigo 1790 e a única decisão de aplicação ao companheiro foi o regramento previsto no artigo 1.829 do Código Civil, conforme a tese “No sistema constitucional vigente é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1829 do Código Civil.” Assim, o Supremo Tribunal Federal não passou do artigo 1829 do CC. Além disso, o autor apresenta 5 (cinco) argumentos pela impossibilidade do companheiro ser tratado como herdeiro necessário. Confira:
1. União estável e casamento continuam sendo institutos diferentes. Tratar os desiguais de forma diferente não é tratar menor. O tratamento diferente não quer dizer ser menor.
2. Os herdeiros necessários estão no artigo 1845 do CC. Tal norma é restritiva de diretos, pois limita a vontade e liberdade patrimonial do falecido. Logo, a lei restritiva não pode ser interpretada de forma ampliada. Só o legislador pode ampliar.
3. Na interpretação, deve se atentar o bem comum. (Art. 5oda LINDB – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum). A interpretação não pode ser para lesar a liberdade patrimonial. Se a pessoa quiser deixar para o companheiro, ela estabelece bens no testamento ou não testa para terceiros. Considerar herdeiro necessário é colocar um óbice à reconstrução da família. O afeto não pode impor a reconstrução familiar, pois tal interpretação determina que o companheiro seria necessariamente herdeiro.
4. Uma das regras básicas do Controle de Constitucionalidade é a presunção de constitucionalidade da lei. Este tratamento deve ser conferido até que o Judiciário expressamente declare inconstitucional. No caso em tela, o STF não declarou o artigo 1.845 inconstitucional no Recurso Extaordinário, tampouco nos Embargos de Declaração.
5. O Voto do Ministro Luiz Edson Fachin, A única posição em todo o processo relacionada à posição do companheiro como eventual sucessor necessário está no voto do Ministro Fachin. Todavia, o posicionamento é contrário que o companheiro seja considerado herdeiro necessário, conforme se depreende: “Na sucessão, a liberdade patrimonial dos conviventes já é assegurada com o não reconhecimento do companheiro como herdeiro necessário, podendo-se afastar os efeitos sucessórios por testamento. Prestigiar a maior liberdade na conjugalidade informal não é atribuir, a priori, menos direitos ou diretos diferentes do casamento, mas, sim, oferecer a possibilidade de, voluntariamente, excluir os efeitos sucessórios” (RECURSO EXTRAORDINÁRIO 878.694).
CONCLUSÕES:
A) Na sucessão do companheiro, deve ser aplicada a regra do artigo 1829 do Código Civil, de forma que na concorrência com os descendentes do falecido, o companheiro herda quantia igual dos descendentes, sendo garantido ¼ da herança, caso todos os descendentes do falecido sejam filhos comuns.
B) Caso inexistam descendentes e ascendentes, o companheiro herda a totalidade da herança, ainda que existam colaterais.
C) O Supremo Tribunal Federal não concluiu se o companheiro é ou não herdeiro necessário. Diante disso, existem duas correntes doutrinárias, conforme os argumentos expostos.