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Vulnerável: Quem é o assistido da Defensoria Pública?
Amélia Soares da Rocha [1] ensina que “a interpretação de necessitado tem sido no sentido de pessoas em condição de vulnerabilidade, que nem sempre significa pessoa economicamente hipossuficiente, embora na maioria das vezes o seja também economicamente, numa cumulatividade de desigualdade”.
Quanto à expressão vulnerabIlidade, Roger Queiroz [2] registra que esta tem origem no latim “vulnerabile”, o qual possui o significado de pode ser atingido ou ferido; frágil; que tem poucas defesas; diz-se do ponto fraco de uma pessoa, coisa ou questão (figurado). O autor vai além, ao apontar como vulnerável aquele que está suscetível a ser ferido, ofendido ou tocado, um indivíduo frágil ou incapaz.
N’outro giro, percebe-se que vulnerável também é um utilizado para reconhecer grupos de pessoas que possuem maior fragilidade dentro da sociedade, como crianças, idosos, mulheres, pessoas com deficiência, índios, negros, entre outros.
No aspecto normativo nacional, a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, no capítulo II – Termos e Definições, define a vulnerabilidade como o “estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido”.
O reconhecimento das vulnerabilidades para além do critério econômico também foi reconhecido na XIV Conferência Judicial Ibero-americana (março/2008. Na ocasião, houve aprovação do documento intitulado “Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade” (100 Regras de Brasília) [3]. Do texto, extraem-se as Regras 3 e 4 acerca da vulnerabilidade:
(3) Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, género, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, económicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
(4) Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a minorias, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o género e a privação de liberdade. A concreta determinação das pessoas em condição de vulnerabilidade em cada país dependerá das suas características específicas, ou inclusive do seu nível de desenvolvimento social e económico
O reconhecimento de outras vulnerabilidades, além da econômica é salutar. Ora, a realidade contemporânea não comtempla apenas a hipossuficiência econômica. Isso fica acentuado com a realidade virtual das mais variadas relações (consumeristas, educacionais, familiares) que passaram a ter maior incidência e relevância pelas vias digitais.
Lúcio Kowarick [4] refere-se aos vulneráveis como a “vasta parcela daqueles que estão à margem, desligados ou desenraizados dos processos essenciais da sociedade, trata-se daquilo que se convencionou denominar os excluídos, noção ampla e escorregadia que se tornou uso corrente e que necessita ser trabalhada empírica e teoricamente”
Decerto, na atualidade, existem as vulnerabilidades podem se manifestar em diversos aspectos. A doutrina já reconheceu, além da vulnerabilidade econômica, a vulnerabilidade jurídica, organizacional e social.
Ana Mônica Anselmo de Amorim [5] sintetiza as modalidades de vulnerabilidade.
A Vulnerabilidade Processual [7]/Jurídica: A vulnerabilidade processual pode ser facilmente vislumbrada na necessária intervenção do órgão Defensorial no processo, para que realize a defesa processual, garantido primados como a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, a exemplo de sua atuação como Curador Especial (artigo 72 do Código de Processo Civil) e na defesa daqueles que não constituíram advogados nos processos criminais, independente de suas condições financeiras;
A Vulnerabilidade social junge-se às situações em que o assistido, por sua própria condição física, etária, étnica, religiosa, racial, necessita de uma maior assistência, e um olhar diferenciado da Defensoria Pública. São pessoas que diante destas características ou escolhas, compõem grupos minoritários, e socialmente segregados. Indígenas, crianças e adolescentes, idosos pessoas com deficiência, negros, pardos, quilombolas, pessoas LGBTQIA+, exemplificativamente, compõem um amplo leque de indivíduos, que praticamente desde o berço lutam pela garantia de seus direitos
A vulnerabilidade circunstancial/Organizacional está relacionada aos cidadãos que por razão de uma circunstância fática ou social, necessitam de uma maior assistência da Defensoria Pública. Esta circunstância pode ser definitiva ou transitória, como exemplo as pessoas enfermas, presas, moradores em situação de rua, e inclusive, vive-se uma situação de vulnerabilidade circunstancial, uma vulnerabilidade pandêmica, que demanda uma maior atuação Defensorial, que neste momento, não se pode furtar uma assistência a todos e todas que busquem o auxílio do defensor público.
De tantas manifestações da vulnerabilidades, é preciso reconhecer a vulnerabilidade geográfica. Nesse aspecto, a experiência deste autor no exercício do sistema de justiça no Estado do Amazonas não pode ficar esquecida. Nos rincões da floresta, não há transporte fluvial ordinária, grande parte da população depende de canoas, inexistem cartórios, pois estes ficam nas sedes dos municípios, distantes horas, dias das comunidades e vilas. Independente da situação organizacional, econômica e jurídica, percebe-se que grande parte da população brasileira, em especial aquela localizada na Amazônia padece de vulnerabilidade geográfica para ter acesso à justiça.
O aspecto da vulnerabilidade geográfica foi lembrado por Roger Moreira de Queiroz [8]. Segundo o autor, este fator objetivo pode ser verificar quando a parte enfrenta obstáculos que inviabilizam a sua presença física e/ou de seus procuradores por se encontrar em localidade distante da sede do juízo e a sua ausência lhe acarrete prejuízo processual.
A vulnerabilidade prisional é aquela decorrente do estado de encarceramento. Nesse aspecto, a vulnerabilidade das pessoas privadas de liberdade já foi reconhecida nas Regras de Brasília sobre acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade (§§ 22 e 23) [9], nos casos “Dessy” e “Romero Cacharane” da Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina e no caso “Instituto de Reeducación del Menor vs. Paraguay”, julgado em 2 de setembro de 2004 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Na doutrina nacional, Rodrigo Roig [11] anota que “a situação de encarceramento retira das pessoas presas ou internadas seus direitos fundamentais, com também as torna carecedoras de maior tutela, discriminação positiva e segurança por parte do Estado, considerando o estado de absoluta vulnerabilidade em que se encontram”.
Nesse cenário, a responsabilidade estatal pela proteção dos presos, grupo humano vulnerável, impõe o dever de atuação da Defensoria Pública, independente da situação financeira, mormente pelo senso comum existente em uma sociedade na qual impera o senso comum de vingança, fomentado pela mídia e opinião popular, as quais pressionam os agentes do sistema político e de justiça a romper os direitos humanos dos encarcerados, os quais uma vez violados, prejudicam toda a sociedade, não só pelos presos serem integrantes da comunidade, mas pelas consequências ao meio extramuros com o fortalecimento de facções para protege-los dentro e fora dos presídios e criação a um verdadeiro “estado paralelo”.
Assim, os grupos de consumidores, idosos, negros, mulheres vítimas de violência, presos, que, em muitos casos em que, embora com recursos financeiros, são tão vulneráveis por conta de se encontrarem em uma circunstância adversa, além de não possuírem estrutura para estrategicamente atuar.
A colenda jurisprudência brasileira já assentou a superação da noção de vulnerabilidade. No julgamento da ADI n.3943, o Supremo Tribunal Federal suplantou qualquer ideia de limitação da legitimidade coletiva da Defensoria Pública aos hipossuficientes econômicos. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade da atuação da Defensoria Pública em favor de necessitados jurídicos, não necessariamente de carentes de recursos financeiros (EREsp. 1.192.577).
Nessa pegada, e atento à dinâmica das novas realidades, este autor também considera a existência contemporânea da vulnerabilidade digital, a qualidade deve ser merecedora de proteção defensorial.
A pandemia COVID-19 repercutiu fortemente nisso, ao impor que muitos que não desenvolviam qualquer atividade via internet, ou atuavam em situações raras, passaram a “mergulhar” nas relações digitais e passaram a ser vítimas de muitas estratégias das redes sociais, algorítimos e outras tecnologias das telas. Assim, a Defensoria Pública deve reconhecer e prever estrategicamente instrumentos para amenizar a vulnerabilidade digital, especialmente aos grupos mais vulneráveis. A atuação da Defensoria Pública em favor de vulneráveis digitais já foi noticiada por Edilson Gonçalves Filho[10]:
“A vulnerabilidade digital, também denominada tecnológica, evidenciou-se durante a pandemia causada pela disseminação da Covid-19. No Brasil, o governo federal, ao estabelecer benefício assistencial destinado às pessoas que tiveram sua renda comprometida no período e se enquadrem nos demais critérios econômicos estabelecidos, vinculou o recebimento à necessidade do beneficiário possuir aparelho celular e endereço de e-mail, baixar aplicativo do programa e receber mensagem via SMS (serviço de mensagens curtas) para acioná-lo, o que gerou graves empecilhos de acesso ao direito por parte de grupos vulneráveis e levou a Defensoria Pública a ajuizar Ação Civil Pública visando superar tais exigências”.
Aqui, importante citar a atuação da Defensoria Pública do Estado do Amazonas[11] no tocante aos cuidados coma exposição de crianças nas redes sociais, bem como os perigos da intoxicação digital. Por intermédio da Portaria n. Portaria n.º 1241/2021-GDPG/DPE/AM, a Defensoria Pública instituiu o Projeto Defensoria Pública Digital e criou o Centro de Estudos das Vulnerabilidades Digitais – CEVD, trabalho coordenado pelo Defensor Publico Marcelo Pinheiro.
Como se vê, a assistência jurídica deve ser prestada pela Defensoria Pública ao necessitado, entendido todo aquele que estiver em situação de vulnerabilidade, ou seja aquele que se encontre com insuficiência de recursos, seja essa carência econômica, jurídica, organizacional, social, geográfica ou digital, pois a noção de vulnerabilidade não está restrita ao aspecto econômica, mas deve ser compreendida de forma ampla, ao ponto de proteger qualquer ser humano que se encontre de alguma forma limitado e frágil.
REFERÊNCIAS
1. ROCHA, Amélia Soares da. Defensoria pública – Fundamentos, organização e funcionamento. São Paulo: Atlas, 2013. p.80.
2. QUEIROZ, Roger de Moreira. Defensoria Pública e vulnerabilidades: para além da hipossuficiência econômica. Belo Horizonte/São Paulo. D’Placido. 2021. p. 44
3. REGRAS de Brasília sobre acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. Disponível em: https://forumjustica.com.br/wp-content/uploads/2011/10/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf. Acesso em 16 nov 2021.
4. KOWARICK, Lúcio. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil: Estados Unidos, França 5. Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 18, N° 51, fev./2003, p. 61-85.
6. AMORIM, Ana Mônica Anselmo de. Público-alvo da Defensoria e parâmetros de elegibilidade: quem são os vulneráveis? Disponível em www.conjur.com.br. Acesso em 15 nov 2021.
7. TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. São Paulo: Método, 2012, p. 184. Segundo a autora, vulnerabilidade processual é a suscetibilidade do litigante que o impede de praticar atos processuais em razão de uma limitação pessoal involuntária; a impossibilidade de atuar pode decorrer de fatores de saúde e/ou de ordem econômica, informacional, técnica ou organizacional de caráter permanente ou provisório.
8. QUEIROZ, Roger de Moreira. Defensoria Pública e vulnerabilidades: para além da hipossuficiência econômica. Belo Horizonte/São Paulo. D’Placido. 2021. P. 53.
9. As 100 Regras de Brasília: Item 10: (22) A privação da liberdade, ordenada por autoridade pública competente, pode gerar dificuldades para exercer com plenitude perante o sistema de justiça os restantes direitos dos quais é titular a pessoa privada da liberdade, especialmente quando concorre com alguma causa de vulnerabilidade enumerada nos parágrafos anteriores. (23) Para efeitos destas Regras, considera-se privação de liberdade a que foi ordenada pela autoridade pública, quer seja por motivo da investigação de um delito, pelo cumprimento de uma condenação penal, por doença mental ou por qualquer outro motivo.
10 GONÇALVES FILHO, Edilson Santana. Acesso à Justiça é impactado pela vulnerabilidade digital. www.conjur.com.br, acessado em 11 nov 2021. 11. Com foco em conflitos impactados pelas novas tecnologias, DPE-AM lança projeto Defensoria Digital. Disponível https://www.defensoria.am.def.br/post/com-foco-em-conflitos-impactados-pelas-novas-tecnologias-dpe-am-lan%C3%A7a-projeto-defensoria-digital. Acesso em 30 ago 2022.
11. Roig, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal : teoria crítica – 4. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 31
O JUDICIÁRIO PODE APLICAR MEDIDAS CAUTELARES (ART. 319 DO CPP) CONTRA PARLAMENTAR?
Sabemos que “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão – Art. 5, §2º, da CRFB.
Todavia, desde a Lei n. 12403/11, o processo penal superou a bipolaridade (prisão versus liberdade), pois foram criadas as medidas cautelares diversas da prisão (art. 319 do CPP).
Daí, surge a questão: O Judiciário não pode decretar a prisão preventiva, mas poderia decretar medidas cautelares diversas da prisão?
A resposta exige um exame cuidadoso.
SE A MEDIDA CAUTELAR NÃO OBSTA O EXERCÍCIO DO MANDATO, o Judiciário, por autoridade própria (ou seja, sem qualquer necessidade de submissão à Casa Legislativa), pode determinar as medidas cautelares previstas no artigo 319 do CPP (STF: ADI n. 5526).
Isso porque, a proteção prevista na Constituição da República não é pessoal, mas serve para proteger o exercício do cargo, do mandato e evitar a intervenção da função jurisdicional na função legislativa. Decerto, segundo o Supremo, a aplicação de uma medida cautelar que não impede o exercício do mandato, não incidiria em intromissão do Judiciário no Legislativo.
OLHA SÓ!
SE A MEDIDA CAUTELAR IMPLICAR NA IMPOSSIBILIDADE DO EXERCÍCIO DO MANDATO, as seguintes observações devem ser atendidas (STF – ADI n. 5526 – 11/10/2017):
a) Desde a expedição do diploma, não cabe falar-se em prisão preventiva ou, ainda, qualquer medida cautelar diversa da prisão que implique a impossibilidade o afastamento do exercício do mandato pelo parlamentar, seja ele componente do Legislativo Federal ou Estadual, sem que haja, para tanto, ratificação de decisões judiciais nesse sentido pela respectiva Casa no prazo de 24 horas.
b) Qualquer ato emanado do Poder Judiciário que houver aplicado medida cautelar que impossibilite direta ou indiretamente o exercício regular do mandato legislativo deve ser submetido ao controle político da Casa Legislativa respectiva, nos termos do art. 53, § 2º, da CF.
Nestes casos (quando a medida cautelar impossibilita o exercício do mandato), a Casa Legislativa poderá revogar as medidas impostas pelo Judiciário, conforme deixou assinalado o Supremo Tribunal Federal em recente oportunidade:
É constitucional resolução da Assembleia Legislativa que, com base na imunidade parlamentar formal (art. 53, § 2º c/c art. 27, § 1º da CF/88), revoga a prisão preventiva e as medidas cautelares penais que haviam sido impostas pelo Poder Judiciário contra Deputado Estadual, determinando o pleno retorno do parlamentar ao seu mandato. O Poder Legislativo estadual tem a prerrogativa de sustar decisões judiciais de natureza criminal, precárias e efêmeras, cujo teor resulte em afastamento ou limitação da função parlamentar. STF. Plenário. ADI 5823 MC/RN, ADI 5824 MC/RJ e ADI 5825 MC/MT, rel. orig. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgados em 8/5/2019 (Info 939).
CONCLUSÃO:
- Se a medida cautelar (art. 319 do CPP) não impede o exercício do mandato, o Judiciário pode aplicar, sem qualquer necessidade de avaliação posterior pela Casa Legislativa.
- Se a medida cautelar (art. 319 do CPP) impede o exercício do mandato (afastamento do cargo, por exemplo), o Judiciário pode impor, mas precisa comunicar em até 24 horas a respectiva Casa Legislativa, para que esta faça a avaliação (sustar ou manter a medida).
SE LIGA! O entendimento exposto acima é limitado a parlamentares federais e estaduais (por força do Art. 27, § 1º, da CRFB). Quanto aos vereadores, estes podem até ser afastados do cargo, sem qualquer necessidade de comunicação à casa Legislativa para deliberação (STJ: Informativo n.
Estados ou Municípios podem obrigar os pais a vacinarem seus filhos?
Para começo de conversa, importante compreender que a criança e adolescente são sujeitos de direitos e não meros objetos.
Ao longo dos anos, a criança sequer tinha consideração de autonomia. Nas antigas sociedades (grega ou romana), a criança e o adolescente sequer eram considerados suscetíveis de proteção jurídica, pois eram meros objetos de propriedade estatal ou paternal, caracterizados por um estado de imperfeição que se perdia somente com o passar do tempo, e unicamente suavizado por um dever ético-religioso de piedade.
O conceito de infância e a própria proteção das crianças só começou a ganhar corpo a partir do século XIX. Até então eram consideradas como pequenos adultos sobre os quais os pais poderiam exercer poder praticamente ilimitado. Eram encaradas como uma espécie de propriedade parental, entendimento derivado da concepção absolutista de pátrio poder proveniente do Direito Romano.
Em Roma, o Pater podia castigar corporalmente seus filhos sem qualquer limitação, modificar seu status social, dar esposa ao filho, dar sua filha em casamento (recebendo dote), divorciar seus filhos, transferi-los a outra família, dá-los em adoção, e até mesmo vendê-los. As crianças eram menos que pessoas e se aproximavam muito da categoria de objetos, de coisas.
Como se percebe, a evolução histórica de superação e reconhecimento de direito das crianças coincide com a necessidade de reconhecimento de outros grupos vulneráveis (mulheres, estrangeiros, negros, prisioneiros, deficientes, pessoas de etnias minoritárias).
Nos últimos 200 (duzentos) anos, um fato marcante foi o caso “Mary Ellen Wilson” (EUA, 1874). Ellen era uma criança (9 anos de idade) que era violentada pela mãe e não tinha qualquer convívio com o mundo externo, comunitário. Um certo dia, os vizinhos perceberam que a criança tinha o corpo muito fraco (pequeno até para uma criança de 5 anos de idade) e apresentava diversos hematomas (“trajada com roupas rasgadas e sujas e tinha uma grande cicatriz que ia do seu olho esquerdo ao queixo, fruto de um golpe de tesoura desferido por sua mãe adotiva”). Ao noticiarem os fatos, as autoridades públicas, embora existente uma norma de negligência dos pais, disseram que não poderiam atuar, pois prevaleceria a autoridade da mãe.
Foi aí que surgiu a seguinte tese desenvolvida Herny Bergh, líder do movimento de proteção dos animais e fundador da “Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra Animais” (ASPCA): Mary Ellen é certamente um pequeno animal e se as crianças são parte do reino animal podem ser protegidas sob a égide das mesmas leis que protegem os animais contra a crueldade”.
E assim aconteceu: A mãe foi condenada pelos maus-tratos e a criança foi acolhida pela Sheltering Arms, uma entidade protetiva, e posteriormente adotada.
No Século XX, o quadro se aperfeiçoou, pois surgiu um olhar para a criança e o adolescente como uma pessoa no sentido pleno do termo, permitindo-lhe atingir direitos e liberdades de que são beneficiários como condição geral, mesmo no período de tempo durante o qual estão em processo de formação.
Na segunda metade do século XX, crianças e adolescentes deixam de ser vistos como meros sujeitos passivos, objeto de decisões de outrem (ou seu representante legal), sem qualquer capacidade para influenciarem a condução da sua vida, e passaram a ser vistos como sujeitos de direitos (pessoas dotadas de uma progressiva autonomia) no exercício de seus direitos em função da sua idade, maturidade e desenvolvimento das suas capacidades. Sim, crianças possuem “cidadania social”.
No nível internacional, a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989) são instrumentos que estabelecem a criança como sujeito destinatário de direitos e proteção física e mental, cuidado especial, devendo, ainda, ser amparado por uma legislação apropriada.
Atenta ao movimento mundial de proteção, a Constituição da República (art. 227) impôs o dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
No plano infraconstitucional, fora aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), um dos diplomas legais mais avançados do mundo em matéria de proteção infantil.
Nessa toada, cumpre observar que uma simples leitura do art. 1634 do Código Civil deixa claro que as atribuições dos pais em relação aos filhos é tratada com uma série de deveres, obrigações e responsabilidades (cuidar, sustento, educar, proteger), como manifestação do princípio da parentalidade responsável
Assim, os pais não são titulares, nem podem ser obstáculos para que crianças e adolescentes exerçam direitos. Ao contrário, Família, Estado e Sociedade possuem o DEVER (não mera faculdade) de efetivar direitos da criança e do adolescente.
Então, o Poder Público pode obrigar a vacinação?
É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no programa nacional de imunizações; (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei; (iii) seja objeto de determinação da união, estados e municípios, com base em consenso médico científico. (STF n. 6586 e 6587).
Especificamente quanto às crianças, é obrigatória a vacinação nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. (art. 14, §1º, do ECA – Lei n. 8069/90).
E no caso da COVID-19, a vacinação também poderá ser obrigatória?
SIM. Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: d) vacinação e outras medidas profiláticas (art. 3º da Lei n. 13.979/2020).
Se a União não determinou obrigatoriedade, o Estado ou Município pode obrigar a vacinação de crianças e adolescentes?
SIM. A efetivação do direito à saúde é concorrente entre os entes, razão pela qual deve ser observada a autonomia dos entes. Art 23, I c/c 198, I da Constituição da República.
Segundo o Supremo Tribunal Federal, as medidas de proteção à saúde seguem a lógica do constitucionalismo horizontal. Desse modo, qualquer dos entes podem adotar medidas sanitárias nos seus limites, independente da União. (STF: ADIs n. 6341 & 756)
Os pais podem ser obrigados a vacinarem seus filhos?
SIM. Segundo o artigo 29 do Decreto n. 78231/76, “É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória“.
Todas as crianças estão obrigadas a serem vacinadas? Existem exceções para vacinação?
Só será dispensada da vacinação obrigatória, a pessoa que apresentar Atestado Médico de contraindicação explícita da aplicação da vacina. (Decreto n. 78231/76 Art. 29. Parágrafo Único).
Mas a vacina para crianças não é de caráter experimental?
NÃO. As vacinas pediátricas não são “experimento”. Não há que se falar em cobaia ou fase de testes, uso emergencial. Isso porque, as vacinas pediátricas da Pfizer (aplicada no Brasil), Coronavac e Astrazenica já possuem a autorização definitiva para utilização. A Janssen já é usada na Europa para crianças. Portanto, o tratamento vacinal disponível para crianças não é experimental.
Os pais podem deixar de vacinar seus filhos sob o argumento da consciência filosófica ou exercício da liberdade de consciência?
NÃO. A obrigatoriedade da vacina não caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar. STF – Tese 1103 – ARE 1267879. Logo, a escusa imotivada ou baseada em convicções filosóficas não prevalece.
Os pais podem ser multados pode deixarem de vacinar seus filhos?
SIM. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao pátrio poder, poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutela pode resultar em multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência (art. 249 do ECA).
A recusa dos pais pode configurar crime?
SIM. A recusa imotivada dos pais pode confirmar o crime de Infração de medida sanitária preventiva Código Penal: Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.
Portanto, qualquer ente público pode impor a vacinação obrigatória às crianças, pois inexiste o direito dos pais em contrariar à efetivação do direito à saudade dos filhos, pois estes são sujeitos de direitos.
MEU PITACO:
As escolas públicas podem condicionar à matricula das crianças ao passaporte vacinal?
Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei – Ar.t 5º, da CRFB.
A Portaria n. 597/2004 do Ministério da Saúde prevê no § 2º do art. 5º a obrigatoriedade de se apresentar o cartão de vacinação com as vacinas elencadas no Plano Nacional de Imunização para matricular em creches, pré-escola, ensino fundamental, ensino médio e universidade. Como a vacina contra o coronavírus não está elencada no PNI, em tese, não é possível que as escolas exijam, por conta própria, o cartão de vacinação contra a Covid-19.
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal (ADI n. 6586) decidiu que a União, os Estados e Municípios podem adotar medidas indiretas para determinar a vacinação compulsória, desde que haja previsão diretamente na lei ou decorra da lei. Logo, o passaporte vacinal só poderá ser condicionante para matricula escolar nos Estados ou Municípios em que houver lei que autorize restringir o acesso de crianças e adolescentes às escolas.
O tempo transcorrido após o crime gera o dever de exclusão da matéria jornalística pela imprensa?
O direito à liberdade de imprensa não é absoluto, devendo sempre ser alicerçado na ética e na boa-fé, sob pena de caracterizar-se abusivo.
O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento que o exercício da imprensa deve pautar-se em três pilares: (I) dever de veracidade, (II) dever de pertinência e (III) dever geral de cuidado.
Decerto, o exercício do direito à liberdade de imprensa será considerado legítimo se o conteúdo transmitido for verdadeiro, de interesse público e não violar os direitos da personalidade do indivíduo noticiado.
Qualquer inobservância que resulte em ofensa a direito da personalidade da pessoa objeto da comunicação, surgirá para o ofendido o direito de ser reparado.
Nessa toada, fatos relativos à esfera penal evidenciam o interesse público na notícia. Portanto, ainda que a notícia interfira negativamente na vida profissional do noticiado, se a divulgação do fato pela imprensa não teve o propósito de ofender a honra, não há que falar em abuso da liberdade de imprensa.
O tempo transcorrido desde a ocorrência do fato é capaz, por si só, de justificar a imposição do dever de proceder à exclusão da matéria jornalística?
O STJ mudou o entendimento. Antes, afirmou-se que os efeitos jurídicos da passagem do tempo, faria com que o Direito estabilizasse o passado e conferisse previsibilidade ao futuro por meio de diversos institutos (prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada)
Todavia, agora em apreço ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (Tema 786), o Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento que o simples decurso ido tempo não é capaz de justificar a atribuição da obrigação de excluir a publicação relativa a fatos verídicos.
STJ – Informativo n. 723 – REsp 1.961.581-MS (3ª Turma)
Confira a tese aprovada pelo STF (Tema 786 – 10/02/2021):
“É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social – analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e civel”
É possível o abate de animais em situação de maus tratos?
Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal decidiu proibir o abate de animais silvestres ou domésticos apreendidos em situação de maus tratos – ADPF n. 640.
Segundo o Ministro Gilmar Mendes, a Constituição não autoriza abate de animais apreendidos em situação de maus tratos. No mesmo sentido, o parágrafo 2º do artigo 25 da Lei 9.605/98 firma o dever do poder público de zelar pelo “bem estar físico” dos animais apreendidos, até a entrega às instituições adequadas como jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas.
Portanto, instrumentalizar a proteção constitucional à fauna e de proibição de práticas cruéis (Artigo 225, parágrafo 1º, VII, da CF/88), de forma a permitir tais medidas inverteria a lógica de proteção dos animais apreendidos em situação de maus tratos para estabelecer, como regra, o abate.
Assim a ADPF foi julgada procedente, de forma a declarar a ilegitimidade da interpretação dos artigos 25, §§1º e 2º da Lei 9.605/1998, bem como dos artigos 101, 102 e 103 do Decreto 6.514/2008.
JUSTIÇA – O sistema de justiça & a desumanização
“Justiça” evidencia a rotina do sistema de justiça que burocratiza os envolvidos em uma rotina que tenta nos tirar o principal: A humanidade.

Atuar no sistema de justiça brasileiro tem sido cada vez mais superficial e despreocupado das reais necessidades do indivíduo.
Ledo engano é pensar que o processo de indignidade é exclusivo do processo penal. Isso já superou os muros da justiça criminal, alcança muitas vezes, processos indenizatórios por abalo a direitos da personalidade, conflitos familiares, até mesmo as salas de aula dos cursos de Direito.
É preciso refletir e compreender que a exclusão da sujeira dos humanos depende da inclusão e reconhecimento que a realidade faz parte de nós.
A exclusão, o preconceito e o sentimento de superioridade são formas de aumentar a marginalidade social, jamais promoverão inclusão e ressocialização.
“Justiça” é um alerta para que nós, personagens do sistema de justiça, compreendamos que desumanizar o outro sujeito processual, rotinizar friamente o nosso papel, atenta contra a nossa própria dignidade, pois nos arranca a empatia, a sensibilidade e outros atributos exclusivos do ser humano.
A desumanização no sistema de justiça não ocorre somente de forma dolosa, mas imperceptível, espontânea.
Permitir que isso aconteça é violar a própria dignidade da pessoa humana de todos envolvidos, é abdicar de ser humano, é deixar de ser gente.
Disponível no NETFLIX
O Presidente da República pode determinar instauração de Inquérito Policial ou o indiciamento de alguém?
A Constituição Federal, dispõe que a apuração de infrações penais e o desempenho das funções de polícia judiciária competem à Polícia Federal e às Polícias Civis.
Nessa vereda, qualquer ato atribuído à autoridade policial que venha a ser praticado por outro agente estatal diverso do delegado de polícia configura, em tese, crimes de usurpação de função pública e abuso de autoridade, dependendo do ato praticado.
Não há na legislação norma que permita a conclusão de que a autoridade policial possa ser qualquer outro agente estatal além do delegado de polícia. Ao contrário, cabe privativamente ao delegado de polícia indicar os indícios de autoria, materialidade e demais elementos circunstanciais no inquérito policial (art. 2º, §1º, da Lei 12.830/2013).
Na persecução penal, o indiciamento é ato administrativo, de competência privativa da autoridade policial, por meio de análise técnico-jurídica do fato delituoso. Vale lembrar que o indiciamento de alguém, por suposta prática delituosa, somente se justificará, se e quando houver indícios mínimos, que, apoiados em base empírica idônea, possibilitem atribuir-se ao mero suspeito a autoria do fato criminoso. Isso porque, é inquestionável que o ato de indiciamento, embora não pressupondo a necessária existência de um juízo de certeza quanto à autoria do fato delituoso, há de resultar, para legitimar-se, de um mínimo probatório que torne possível reconhecer que determinada pessoa teria praticado o ilícito penal, pois externamente, indica à sociedade o provável sujeito ativo do crime.
Entre as funções privativas do delegado de polícia está o indiciamento, a ser realizado através de ato fundamentado, “mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias” (art. 2º, § 6º).
Os tribunais superiores possuem entendimento firmes no sentido de que o indiciamento é ato privativo do delegado de polícia, razão pela qual não pode ser a ele requisitado
STF – HC 115.015, Min. Rel.. Teori Zavascki, j. em 27/08/2013 – Sendo o ato de indiciamento de atribuição exclusiva da autoridade policial, não existe fundamento jurídico que autorize o magistrado, após receber a denúncia, requisitar ao Delegado de Polícia o indiciamento de determinada pessoa.
STJ – STJ. RHC 47.984, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 04/11/2014 – É por meio do indiciamento que a autoridade policial aponta determinada pessoa como a autora do ilícito em apuração. Por se tratar de medida ínsita à fase investigatória, por meio da qual o Delegado de Polícia externa o seu convencimento sobre a autoria dos fatos apurados, não se admite que seja requerida ou determinada pelo magistrado, já que tal procedimento obrigaria o presidente do inquérito à conclusão de que determinado indivíduo seria o responsável pela prática criminosa, em nítida violação ao sistema acusatório adotado pelo ordenamento jurídico pátrio.
Há alguma peculiaridade em relação ao indiciamento de membros do Congresso Nacional?
Senadores da República e Deputados Federais podem ser indiciados. No entanto, a autoridade policial não pode indiciar parlamentares sem prévia autorização do ministro-relator do inquérito, ficando a abertura do próprio procedimento investigatório (inquérito penal originário) condicionada à autorização do Relator. Nos casos de competência originária dos Tribunais, a atividade de supervisão judicial deve ser desempenhada durante toda a tramitação das investigações, desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo titular da ação (STF – QO no Inq. 2.411).
SE LIGA!
O Presidente da República NÃO pode determinar instauração de Inquérito Policial ou o indiciamento de alguém, pois a instauração e presidência de inquérito policial, bem como indiciamento são atos privativos do Delegado de Polícia. Quanto os membros do Congresso Nacional, o indiciamento somente poderá ser feito após prévia autorização do Supremo Tribunal Federal (Ministro-relator).
O Senador Jorge Kajuru violou a Constituição e praticou crime ao divulgar gravação telefônica com o Presidente Bolsonaro?
Em entrevista ao programa Direto ao Ponto (Rádio Jovem Pan), o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro (bacharel em Direito) afirmou que o Senador Jorge Kajuru violou o artigo 5º da Constituição e teria praticado crime ao divulgar a conversa ocorrida com o Presidente Jair Bolsonaro, pois o direito à privacidade proíbe divulgação de conversas telefônicas sem autorização judicial.
O deputado Eduardo Bolsonaro tem razão?
Para começo de conversa, precisamos lembrar o que consta no artigo 5º, XII, da CRFB: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”; (Grifei).
Percebe-se que a Constituição estabelece a inviolabilidade das comunicações. Todavia, como os direitos fundamentais não são absolutos, é possível relativizar tal inviolabilidade.
Porém, SE LIGA! Quanto às comunicações telefônicas, estas podem ser acessadas, mas dependem de autorização judicial (clausula de reserva de jurisdição).
Um parêntese: Clausula de Reserva de Jurisdição equivale a dizer que são situações em que o Judiciário não dá apenas a “ultima palavra”, mas também, a “primeira palavra”. È o que acontece na busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), na interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e na decretação da prisão de qualquer pessoa, salvo prisão em flagrante (CF, art. 5º, LXI).
Daí, ao que parece uma conversa telefônica depende de autorização judicial para acesso e divulgação.
Ocorre que é indispensável compreender o que é a interceptação telefônica. Tal instituto se dá quando todos os envolvidos na conversa telefônica ignoram que um terceiro esteja acompanhando o diálogo. Apenas neste caso, há necessidade de autorização judicial.
E o que ocorre nos outros casos quando alguém envolvido na conversa tem conhecimento da gravação? Neste caso, não há interceptação, pois a gravação é feita por um dos envolvidos (direta ou indiretamente). Nestas circunstâncias, via de regra, não há que se falar em violação à proteção da privacidade, pois quem está gravando sem o conhecimento do outro ou permitindo a gravação é um dos interlocutores que escolheu dispor da sua privacidade. Logo, malgrado o desvio ético, não há que se falar em violação à Constituição nas gravações clandestinas.
Para melhor ilustrar, segue o quadro abaixo:
GRAVAÇÃO PESSOAL: | Alguém realiza a gravação com um gravador no bolso ou celular, mas sem o conhecimento do outro. NÃO PRECISA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. |
GRAVAÇÃO CLANDESTINA TELEFÔNICA: | A captação se dá em relação à conversa telefônica ou via Skype, WhatsApp etc. NÃO PRECISA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. |
GRAVAÇÃO CLANDESTINA AMBIENTAL: | A conversa é realizada em um ambiente que não o telefone (espaço aberto, repartição pública), sendo captada e gravada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro. NÃO PRECISA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. |
INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA: | A captação e a gravação da conversa são feitas sem que os interlocutores, nenhum deles, tenha conhecimento. Neste caso, A CONSTITUIÇÃO EXIGE ORDEM JUDICIAL, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução (art. 5º, XII, da CRFB). |
Cumpre esclarecer que as gravações clandestinas (feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro) já foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal:
“a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, quando ausente causa legal de sigilo ou de reserva da conversação não é considerada prova ilícita”. (- AI 578.858-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 04.08.2009, 2.ª T., DJE de 28.08.2009).
“A gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, quando ausente causa legal de sigilo ou de reserva da conversação não é considerada prova ilícita” (RE 630.944 AgR/ BA, rel. Min. Ayres Britto, 2ª Turma, j. 25-10-2011).
Aliás, em outra oportunidade, o STF admitiu como prova a conversa gravada por um dos interlocutores, ainda que com a ajuda de um repórter (cf. RE 453.562-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 23.09.2008, 2.ª T., DJE de 28.11.2008).
Então, o que seria crime?
Nos termos do artigo 8º da Lei n. 9296/96, o crime ocorre quando há interceptação telefônica ou captação ambiental (sem conhecimento dos envolvidos) sem autorização judicial. Por oportuno, esclareça-se que o artigo 8º-A, parágrafo primeiro dispõe que “ Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores”
Como se vê, não há que falar em violação à Constituição (art. 5º, XII, da CRFB), tampouco crime quando ocorre a gravação por um dos interlocutores, pois não se encaixa no conceito de interceptação telefônica (realizada por terceiro sem conhecimento dos envolvidos). Também não é crime, pois não há qualquer tipo penal que considere infração penal tal conduta. Apenas a interceptação telefônica sem autorização judicial é crime (art. 10 da Lei n. 9.296/96).b
NOVIDADE LEGISLATIVA:
Importante lembrar que o Pacote Anticrime (Lei n. 13964/19) incluiu o artigo 8-A na Lei n. 9.296/96 (Lei das Interceptações telefônicas) para também permitir a captação ambiental de sinais eletrogmanéticos (energia), ópticos (imagens) e acústicos (sons).
Art. 8º-A. Para investigação ou instrução criminal, poderá ser autorizada pelo juiz, a requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, quando:
I – a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis e igualmente eficazes; e
II – houver elementos probatórios razoáveis de autoria e participação em infrações criminais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou em infrações penais conexas.
§ 1º O requerimento deverá descrever circunstanciadamente o local e a forma de instalação do dispositivo de captação ambiental.
§ 2º (VETADO).
§ 3º A captação ambiental não poderá exceder o prazo de 15 (quinze) dias, renovável por decisão judicial por iguais períodos, se comprovada a indispensabilidade do meio de prova e quando presente atividade criminal permanente, habitual ou continuada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 4º (VETADO).
§ 5º Aplicam-se subsidiariamente à captação ambiental as regras previstas na legislação específica para a interceptação telefônica e telemática.
Ei, você é patriota?
O patriotismo é um sentimento que floresce nos dias atuais, sobretudo, na presente data: 07 de setembro.
Daí, resolvi dar alguns pitacos sobre o assunto. Vamos lá?
Para começo de conversa, precisamos encontrar o significado. Patriotismo consiste na devoção, no sentimento de amor à pátria, ao seu povo, o nacionalismo. Porém, estas palavras não traduzem tudo o que podemos extrair do patriotismo.
É impossível compreender patriotismo sem ter uma visão clara do que é “nação”: Um grupo de pessoas que vive sob um governo, soberano e independente nas suas relações com outras nações.
A existência de várias nações no mundo é salutar, pois permite o reconhecimento de diferenças culturais e o “parcelamento” do poder. Imagine se o mundo todo fosse uma nação? Teríamos apenas um ditador mundial, não teríamos outra nação para contrapor e isso geraria um poder ilimitado.
O patriotismo não pode ser confundido como a idolatria aos líderes. É natural e valiosa a honra pelos patriotas aos seus líderes. Entretanto, aqueles que lideram e suas vontades não podem ser confundidos com os objetivos do Estado. Percebe-se que países totalitários acabam confundindo a população, e, sob o pretexto patriota, ressurgem a ideia dos monarcas dos governos absolutos, países em que há uma forte vibração e devoção exacerbada pelos líderes, como estratégia de demonizar qualquer crítica contrária e ocultar, minimizar erros.
E nos alertemos: O poder tende a abusar do poder. Da mesma forma, a história revela que há algo comum nos governos corruptos: O excesso ilimitado de poder. É imperioso que o poder seja limitado.
Todavia, o patriotismo não pode ser confundido como o “nacionalismo excludente”. Ora, se o capitalismo estimula a competição entre indivíduos e o socialismo promove a luta entre classes, o nacionalismo denota um caráter fascista: A luta entre nações. Essa “luta” não começa com guerras, mas estas são apenas decorrência lógica de uma competição que inicia de forma discreta, com desejos de privilégios à nação a ponto de oprimir as minorias dentro do país ou promover conflitos comerciais com outros países (protecionismo comercial). Decerto, a preocupação daqueles que lideram passa a ser o domínio de poder e força do Estado, ao invés da preocupação com o bem-comum (objetivo proposto pelo Estado).
O patriotismo não pode ser “cego”, ou seja, não pode ser compreendido como a proibição de criticar o seu país ou seus líderes. Na verdade, o patriotismo autêntico estimula a promoção do país, critica os governos com franqueza, quando há práticas destoantes dos padrões objetivos.
O abandono ao patriotismo é perigoso, pois tal repulsa, nos afasta do pertencimento, da identidade a um grupo, a uma cultura e acaba nos descomprometendo do sentimento do solidariedade social (servir, proteger, defender, retratar história) e eleva comportamentos egoístas que mais tarde, repercutirão em falecimento das nações.

Assim, o patriotismo implica mais que frases de efeito em homenagem ao país e vestir-se com as cores (tais atos não podem ser diminuídos e devem ser praticados, pois evidenciam visualmente o amor, a gratidão, a devoção, o sentimento de identidade e orgulho pela nação – como vemos frequentemente em eventos esportivos), deve ser acompanhado por um posicionamento crítico (fiscalização e observância dos princípios e padrões escolhidos estabelecidos) e inclusivo (não deve ser cego às persistentes injustiças, mas deve ampliar a tradição da democracia multiétnica para mostrar que os elos que nos unem vão muito além da etnia e da religião).
É nesse sentido que se afirma o PATRIOTISMO, afastado de qualquer rejeição ao espírito excludente de nação, mas também sem que seja confundido com a idolatria aos líderes ou permissão do exercício do poder ilimitado, ou com o nacionalismo excludente que deseja se sobrepor as outras nações.Dessa forma, ser PATRIOTA consiste em reconhecer a nação como ela de fato é. Ser PATRIOTA é amar o Brasil. Ser PATRIOTA é lutar para que seja incluída nas leis, políticas públicas e decisões de governo, a multiplicidade crescente de formas culturais de vida, grupos étnicos, confissões religiosas e diferentes imagens de mundo, com a identificação e reconhecimento dos direitos das minorias.
A Constituição de 1891: A primeira Constituição da República
A Proclamação da República ocorreu em 15 de novembro de 1889.
Contudo, a Constituição somente foi promulgada 24 de fevereiro de 1891, pois decorreu de uma assembleia constituinte (1/4 dos constituintes eram militares), sob a presidência de Prudente de Moraes. O Texto possui apenas 91 artigos
Entre a proclamação e a promulgação da Constituinte, o Brasil foi regido por decretos.
Todos os governos provisórios dos Estados (antes “províncias”) foram eleitos.
“Os Poderes” e o processo eleitoral
A Constituição de 1891 já não apresentou o “Poder Moderador”, estabeleceu mandato para Senador (antes eram vitalícios). Os mandatos de Senador são de 9 anos e de Deputado Federal tem 3 anos. Cria-se o Supremo Tribunal Federal. Cada Estado tinha o seu governador ou presidente.
A capacidade eleitoral dependia da idade de 21 anos e ser alfabetizados. As mulheres continuavam excluídas da possibilidade de votar (mesmo inexistindo qualquer vedação expressa), o que era corriqueiro naquela época, embora muitos constituintes já defendiam a possiblidade de votar. O voto era “descoberto” (não era secreto). Não por acaso, os candidatos apresentados pelos governos sempre eram eleitos.
Tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal era composto de quinze Juízes, nomeados na forma do art. 48, nº 12, dentre os cidadãos de notável saber e reputação, elegíveis para o Senado, Floriano Peixoto chegou a nomear dois generais e um médico (Barata Ribeiro), sem qualquer formação jurídica, para o Supremo Tribunal Federal.
Na oportunidade, foi estabelecida no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabeIecer-se a futura Capital federal (art. 3º).
Estado, Família e Igreja
A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita (art. 72, §4º), o que deixa clara a distância entre Estado e Igreja.
Além disso, a União e os Estados ficaram proibidos de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos (art. 11, 2º) e todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum – art. 72, § 3º.
Nenhum culto ou igreja gosará de subvenção official, nem terá relações de dependencia ou alliança com o Governo da União, ou o dos Estados. A representação diplomatica do Brasil junto á Santa Sé não implica violação deste principio (art. 72, 7º).
Duas curiosidades
Como a Constituição de 1891 teve muita influência dos Estados de São Paulo e Minas Gerais (os Estados cafeeiros), foi prevista competência para os Estados do imposto de exportação – Art. 9º, 1º).
O art. Art 7º do ADCT concedeu a D. Pedro de Alcântara, ex-Imperador do Brasil, uma pensão que, a contar de 15 de novembro de 1889, garantia-lhe, por todo o tempo de sua vida, subsistência decente. O Congresso ordinário, em sua primeira reunião, fixou o quantum desta pensão. Porém, D. Pedro II nunca aceitou receber tais valores.
Obs.: Os textos foram copiados da Constituição de 1891. Assim, obedecem a ortografia oficial daquela época.