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DOSIMETRIA DA PENA: O que fazer com as causas de aumento sobressalentes?

28/ março / 2021 Deixe um comentário

O Código Penal adotou o modelo trifásico para aplicação da pena privativa de liberdade (Nelson Hungria). Isso é verificado a partir do artigo 68. Confira:

Art. 68 – A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento

1ª fase – Pena-base – Circunstâncias Judiciais.

2ª fase – Aplicação das atenuantes e agravantes

3ª fase –  Aplicação das causas de diminuição e aumento.

Na primeira fase, a pena-base é analisada a partir das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: 

Como se vê, são 8 (oito) circuntâncias judiciais: 1) Culpabilidade; 2) Antecedentes; 3) Conduta Social; 4) Personalidade; 5 ) Motivos do crime; 6) Circunstâncias do crime; 7) Consequências do crime; 8) Comportamento da vítima.

Na segunda fase, a pena intermediária leva em conta as atenuantes e Agravantes, as quais estão previstas entre os artigos 61 a 67 do Código Penal.

Importa notar que assim como as circunstancias judiciais, as atenuantes e agravantes não integram o crime, mas possuem relação capaz de interferir na pena.  As atenuantes aplicam-se a todos os crimes, enquanto que as agravantes, salvo a reincidência, aplicam-se apenas nos crimes dolosos.

Malgrado divergência doutrinária, registra-se que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento sumulado que “a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal” (Enunciado n. 231).

Quanto vale uma atenuante ou agravante? Diante do silêncio legislativo, a doutrina orienta que a proporcionalidade deve ser observada, tendo como valores isonômicos entre uma atenuante e uma agravante.

Por sua vez, a jurisprudência indica o valor de 1/6 (um sexto) como valor a ser considerado para cada atenuante ou agravante, sem prejuízo de eventual exceção. Nesse sentido: STJ, HC 594.584, Rel. Min. Joel Ilan Paciornick, 5ª Turma, j. 22.09.2020: A pena foi aumentada em 1/5 em razão da reincidência específica do paciente. Acontece que o atual entendimento desta Quinta Turma é no sentido de que essa especificidade, por si só, não justifica aumento superior a 1/6.

CONCURSO DE CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES E ATENUANTES – No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência.

Assim, esta é a ordem de preponderância nas agravantes e atenuantes: a) Motivos; b) Personalidade (confissão está aqui) e c) Reincidência

Observações importantes

  • A menoridade de 21 anos prepondera contra todas.
  • A confissão espontânea se compensa pela reincidência
  • A multirreincidência prepondera sobre a confissão espontânea.

A jurisprudência firmou entendimento pela possibilidade da compensação entre reincidência e confissão:

DIREITO PENAL. COMPENSAÇÃO ENTRE REINCIDÊNCIA E CONFISSÃO ESPONTÂNEA. AgRg no REsp 1.424.247-DF, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 3/2/2015, DJe 13/2/2015.

6ª Turma – Tratando-se de réu multirreincidente, não é possível promover a compensação entre a atenuante da confissão espontânea e a agravante da reincidência. Apesar de se reconhecer que a 3ª Seção do STJfirmou o entendimento de que a atenuante da confissão espontânea pode ser compensada com a agravante da reincidência (EREsp 1.154.752-RS, DJe 4/9/2012), o fato é que se essa compensação fosse admitida no caso de réu multirreincidente haveria violação, sobretudo, ao princípio da proporcionalidade e individualização da pena, já que a multirreincidência exige maior reprimenda do que a reincidência advinda de um único fato.

Na terceira fase da dosimetria da pena, incidem as causas de diminuição e causas de aumento.

As causas de aumento e diminuição estão presentes no Código Penal e na legislação especial, incidem sobre a pena intermediária e podem levar a pena para aquém do mínimo ou além do máximo

Ocorre que todas as causas de aumento (e de diminuição também) previstas na Parte Geral do Código Penal devem incidir na dosimetria da pena.

Todavia, no concurso de causas de aumento ou de diminuição previstas na parte especial (ou na legislação especial), pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua. (art. 68, parágrafo único, do CP).

Diante disso, surge uma questão: O que fazer com as causas de aumento sobressalentes (sobejantes, aquelas que não foram aplicadas no caso concreto)?

Segundo o Superior Tribunal de Justiça, as causas de aumento que “sobraram” na dosimetria da pena são utilizadas na pena intermediária (segunda fase) ou na pena-base (primeira fase), em respeito à relação da individualização da pena e o caso concreto, não podendo ser desprezadas, pois isso violaria a proporcionalidade (como se o Direito Penal ficasse “cego” na hora de aplicar a pena para um circunstância concreta que ocorreu).

Cumpre notar que o mesmo raciocínio deve ser utilizado para causas de aumento de valor fixo (art. 177 do CP), como causas de aumento com valor variável (ex.: 1/3 até 1/2 – art. 157, §2º, do CP).

Assim, caso em um crime exista mais de uma causa de aumento presente na parte especial, uma delas deve ser utilizada para gerar aumento na terceira fase e as outras devem incidir na primeira ou segunda fase da dosimetria da pena, conforme o caso concreto.

Confira a ementa do Habeas Corpus n. 463434:

(…) A questão jurídica trazida nos presentes autos e submetida ao crivo da Terceira Seção diz respeito, em síntese, à valoração de majorantes sobejantes na primeira ou na segunda fase da dosimetria da pena, a depender se a causa de aumento traz patamar fixo ou variável. Contudo, não é possível dar tratamento diferenciado à causa de aumento que traz patamar fixo e à que traz patamar variável, porquanto, além de não se verificar utilidade na referida distinção, o mesmo instituto jurídico teria tratamento distinto a depender de critério que não integra sua natureza jurídica.

3. Quanto à possibilidade propriamente dita de deslocar a majorante sobejante para outra fase da dosimetria, considero que se trata de providência que, além de não contrariar o sistema trifásico, é a que melhor se coaduna com o princípio da individualização da pena. De fato, as causas de aumento (3ª fase), assim como algumas das agravantes, são, em regra, circunstâncias do crime (1ª fase) valoradas de forma mais gravosa pelo legislador. Assim, não sendo valoradas na terceira fase, nada impede sua valoração de forma residual na primeira ou na segunda fases. 4. A desconsideração das majorantes sobressalentes na dosimetria acabaria por subverter a própria individualização da pena realizada pelo legislador, uma vez que as circunstâncias consideradas mais gravosas, a ponto de serem tratadas como causas de aumento, acabariam sendo desprezadas. Lado outro, se não tivessem sido previstas como majorantes, poderiam ser integralmente valoradas na primeira e na segunda fases da dosimetria.

Categorias:Penal

Nagibão e o art. 1790 do Código Civil – A História contada por Zeno Veloso que divulgou Manacapuru em todo o Brasil

21/ março / 2021 Deixe um comentário

Segue abaixo, a famosa História de Nagibão e o amor por Terezinha que se descobriram em Manacapuru/AM contada inúmeras vezes pelo querido Mestre Zeno Veloso: 

Desde que foi aprovado o Código Civil, em 2002 – e o mesmo ainda estava na vacatio legis ­-, em artigos, palestras, pareceres, livros, manifestações orais e escritas, combati o art. 1.790 do aludido Código, que regulava a sucessão entre companheiros, e surgiu estranho, equivocado, desde o local em que foi inserido. Mostrei que o dispositivo era retrógrado, discriminador, reacionário, passadista, “dando um pulo para trás”, voltava a um tempo já ultrapassado em que imperavam a hipocrisia e a intolerância. Garanti que se tratava de uma norma que violava princípios fundamentais da Carta de 1988, apresentando-se perdidamente inconstitucional. Mas, apesar dos males indescritíveis que essa lei causava no meio social, das angústias e injustiças que proporcionou, continuava vigorando, e os anos se sucedendo…

Fiz uma verdadeira pregação contra o art. 1.790, em muitas cidades, em todas as capitais – exceto Rio Branco, no glorioso Acre, onde nunca estive. E por toda parte, ao lado dos argumentos de ordem técnica, de índole civil e constitucional, contava a história de Nagibão e de sua fiel companheira de muitos anos, a doce Terezinha, que ele havia conhecido e começado a amar na simpática cidade de Manacapuru, no Amazonas. Sem exagero, para combater o terrível art. 1.790 do Código Civil, provando que era insensato, desarrazoado, desproporcional, injustíssimo, devo ter falado da vida e da morte de Nagibão umas cem vezes, de Norte a Sul do País, “do Monte Caburaí (RR), ao Arroio Chuí (RS)”. Quem sabe – e pela última vez -, atendendo a muitos pedidos, e pelo site de nosso IBDFAM, vou dizer como tudo aconteceu. A história é verídica, com alguma coisa inventada, pois “quem conta um conto aumenta um ponto”. Aproveito para fazer uma homenagem à memória de

Nagibão, cujo exemplo ajudou a derrubar um artigo do Código Civil que era uma poderosa muralha de iniquidade, preconceito e parcialidade.

Nagib nasceu em Zahle, zona montanhosa do Líbano e ali começou seus estudos. Tinha dois amigos, muito próximos: Salim, que era seu primo, e Mustafá. Eram meninos pobres, nem sequer conheciam Beirute, na margem do Mediterrâneo, que ficava tão próxima, no pé da montanha. Desde logo perceberam que, sem estudo, trabalho e muita sorte não iriam conseguir vencer a pobreza e ascender social e economicamente.

Com 16 anos, Nagib era o melhor aluno da turma em História e Geografia. Apaixonou-se pelo Brasil e, especialmente, pela Amazônia. Tinha um parente afastado de sua mãe estabelecido em Manaus, e resolveu se transferir para essa cidade. Com o apoio de seus pais e a boa vontade desse parente, tirou o passaporte, obteve o visto e partiu para o sonho. Veio de navio, na terceira classe. Salim não quis acompanhá-lo, mas seu melhor amigo, Mustafá, gostou da aventura amazônica, e veio junto.

Em Manaus, e já tendo aprendido algumas palavras de português, Nagib começou a trabalhar como balconista numa mercearia. E ali permaneceu durante quatro anos. Os fregueses o chamavam de Nagibão, pois era alto, gordo e trazia, sempre, um sorriso no rosto. Logo que completou vinte anos, e já com alguma economia, o rapaz resolveu assumir seu próprio negócio. Comprou a prazo um pequeno barco motorizado, e se dedicou ao ramo dos regatões. Percorria rios, lagos, furos, igarapés, levando os mais diversos produtos – leite em pó, cerveja, açúcar, charque, manteiga, brinquedos etc -, que vendia no interior ou trocava com os ribeirinhos por mercadorias regionais, como frutas, farinha de mandioca, aves, couro de animais e essências da floresta. Nagib ficou conhecido numa extensa região. Quando aportava nos trapiches das pequenas localidades, ouvia a algazarra simpática do molecório – a quem doava balas e bolas de futebol -: “o Nagibão chegou, o Nagibão chegou”…

Assim o tempo foi correndo, e ele enriquecendo. Já tinha comprado três casas em Manaus e o barco em que fazia o regatão era maior e mais equipado. Foi quando conheceu Lívia, que tinha vindo de Parintins para estudar na capital. Entre namoro a noivado decorreram dois anos, e se casaram. O casal não teve filhos, o que, provavelmente, estreitou os laços do matrimônio. Eram muito felizes. Mas a esposa morreu, prematuramente. Nagibão, desconsolado, chorando compulsivamente, na beira do túmulo, fez o juramento: “Livia, meu amor, jamais me casarei de novo”.

Viúvo, com uma boa renda dos imóveis que havia adquirido – nessa altura já era dono de mais de uma dezena deles na progressista Zona Franca de Manaus -, Nagibão diminuiu suas atividades, mas, de vez em quando, até para reencontrar antigos clientes, matar saudades, partia em seu barco para localidades em que tantas e tantas vezes havia chegado. Uma vez, foi à linda cidade de Manacapuru, na margem esquerda do rio Solimões, onde tinha muitos amigos. No domingo, dirigiu-se ao lago do Miriti, onde fica o balneário local, e viu um grupo de moças que se banhavam. Uma delas era morena-jambo, olhos esverdeados, levemente puxados, cabelos negros que cobriam as costas largas, enfim, uma cabocla típica da terra, coisa mais linda o nosso libanês jamais tinha visto antes. Desde que deitou seus olhos sobre aquela exuberante figura de mulher, Nagibão ficou apaixonado. Aproximou-se da moça, a simpatia foi correspondida, começaram a namorar. Chamava-se Terezinha, e contou-lhe que tinha sido noiva de um rapaz, moço rico, a quem se entregou com amor e confiança, mas ele, entretanto, enganou-a, abandonando-a às vésperas do casamento.

Para resumir, Nagibão passou a viajar em seu barco com Terezinha, e levou-a para morar com ele, em sua casa, na rua Maceió, bairro de Vila Municipal, em Manaus. Numa noite, acordou depois de um sonho, em que uma voz dizia: “E o teu juramento no enterro de Lívia?”. Respondeu: “mas eu não casei com Terezinha; só estou amigado”. Simples assim, e a questão ficou resolvida.

Passaram-se dez anos. Nagibão e Terezinha viviam sob o mesmo teto, assumiram um relacionamento afetivo de forma pública, notória, contínua, respeitosa, frequentavam a casa de amigos e os recebiam em sua morada, formavam uma verdadeira família. Todos os requisitos do art. 1.723 do Código Civil – que define a união estável – estavam observados, atendidos. Diria o velho e bom Virgílio de Sá Pereira: todos viam ali uma família. Não tiveram filhos e Nagibão não comprou mais nenhum imóvel, satisfeito que estava com os muitos que já tinha e administrava.

Em 2003, com 58 anos de idade, Nagibão sofreu um enfarte e faleceu. Não tinha testamento, pois era supersticioso e achava que quem fazia testamento morria em seguida. O enterro atraiu muita gente. O falecido tinha um largo círculo de amigos. Terezinha estava desconsolada, chorava muito, era amparada pelas amigas. Mustafá, o melhor amigo do defunto, e que sempre recebera favores dele, vivendo praticamente às suas custas, passou-lhe o braço nas costas e dirigiu palavras de conforto. O enterro deu-se no cemitério de São João Batista. A sepultura está debaixo de uma mangueira, como ele queria.

Passada a Missa do 7º Dia, Terezinha estava resolvida a conversar com um advogado, pedir conselhos e perguntar como devia agir com relação ao patrimônio deixado pelo de cujus.

Nessa altura, um fato misterioso ocorreu: Mustafá, que desde a juventude e até então jamais tinha saído de Manaus, estava desaparecido. Ninguém dava notícias dele. Alguém disse que tinha partido para Belém. Outro garantiu tê-lo visto no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.

Na verdade, Mustafá havia obtido empréstimo num banco – já que não tinha mais o velho amigo que o sustentara a vida inteira -, comprou uma passagem de avião e foi para o Líbano, seguindo para sua cidade natal, Zahle. Não foi difícil localizar o amigo de infância, Salim, que, no primeiro momento nem o reconheceu. Já não se viam há décadas. Explicou, então, a razão de sua visita: convidava o amigo para ir ao Brasil, conhecer a Amazônia, visitar Manaus. Salim riu-se e disse: “Eu não tenho dinheiro nem para ir ali próximo, a Beirute, quanto mais para uma viagem tão longa”. Mustafá explicou, então, que todas as despesas seriam pagas por ele. Contou que Nagib havia morrido, deixado grande fortuna – uns quinze imóveis – e que ele, Salim, era o único herdeiro do falecido, como seu parente colateral mais próximo. Salim ainda argumentou: “mas eu não vi este meu primo desde que ele foi embora; nunca mandei ou recebi uma carta sequer; é um parente longínquo; quem é o louco que te disse que sou o único herdeiro dele?” Mustafá respondeu: “Quem diz é o próprio Código Civil brasileiro”, e completou: “não vamos perder tempo: tu assinas uma escritura me cedendo metade da herança de teu primo e vamos partir para o Brasil, buscar o que é nosso, de direito, que estamos muito ricos”.

E assim aconteceu. Assessorado pelo ladino Mustafá e por um experiente advogado, Salim apresentou-se em juízo, no Amazonas, mostrou documentos que provaram seu parentesco com o de cujus. Seu advogado, num elegante arrazoado, mostrou que todos os bens de Nagibão haviam sido comprados antes do início de sua união com Terezinha, e que nenhum deles tinha sido adquirido na vigência da união estável, razão pela qual a companheira sobrevivente não era meeira, nem, muito menos, tinha direito à herança. Considerando que o falecido não deixou descendentes, nem ascendentes, sendo o parente mais próximo, na linha colateral, de quarto grau, seu primo, Salim, requereu em nome deste a adjudicação de toda a herança, como único e universal herdeiro, tudo nos termos do art. 1.790caput, do Código Civil.

Realmente, esse terrível art. 1.790, mal pensado e pessimamente inspirado, excluía a companheira da herança do companheiro morto, neste caso. Na sequência, Terezinha foi praticamente expulsa de casa, de “sua” casa, na qual vivia há tantos anos, ao lado do homem que a amava. Voltou a morar na sua terra querida, Manacapuru, onde trabalhava como costureira, sobrevivendo na pobreza, com toda a dignidade.

No direito brasileiro, desde a Lei Feliciano Pena, de 31 de dezembro de 1907, o cônjuge sobrevivente ocupa a terceira classe na ordem da sucessão legítima, afastando os colaterais. Esta boa solução foi mantida nos arts. 1.603 e 1.611 do Código Civil de 1916 e nos arts. 1.829 e 1.838 do Código Civil em vigor. Com o advento da Constituição de 1988, surgiu a Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que regulou o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão, estabelecendo, no art. III: “na falta de descendentes e de ascendentes, o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança”. Ou seja, os colaterais não concorriam com o companheiro sobrevivente, que excluía tais parentes da sucessão. Não havia tradição, clamor social, argumento jurídico, motivo ou razão para que o Código Civil de 2002 determinasse no art. 1.790 o grave retrocesso na sucessão dos companheiros.

Há um ditado popular que afirma: “não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe”. No dia 10 de maio de 2017, o Supremo Tribunal Federal – STF concluiu a votação do Recurso Extraordinário 878.694-MG, com repercussão geral, Relator Ministro Luís Roberto Barroso, e declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, que tratava da sucessão hereditária dos companheiros. O ilustre Ministro Barroso, em seu precioso voto, deu-me a honra de citar um trabalho que escrevi sobre o tema. Para efeito de repercussão geral, foi aprovada a seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no art. 1.829 do Código Civil”. Ou seja, a sucessão entre companheiros passa a ser regida pelas normas do Código Civil dirigidas à sucessão dos cônjuges. Esta decisão trará, sem dúvida, importantes consequências e desdobramentos no Direito das Famílias brasileiro, e simboliza mais um passo vigoroso para a equiparação entre casamento e união estável como formas de constituição de entidades familiares, com a mesma dignidade e respeito, baseadas na afetividade, seriedade, estabilidade, compromisso de constituição de família. No direito brasileiro, considerando a legislação e a jurisprudência, e quanto aos efeitos jurídicos, nada distingue ou separa, praticamente, a união estável do casamento. Se nosso querido Nagibão tivesse morrido mais tarde, depois daquela histórica decisão do STF, acima citada, Terezinha, sua companheira, ocuparia a terceira classe dos herdeiros legítimos, afastando os colaterais, e ficaria com toda a herança do falecido. Salim, o primo libanês, provavelmente, nem teria realizado a longa viagem desde Beirute; e, se a tivesse feito, sentiria o grande prazer de conhecer Manaus, a Amazônia, mas, do primo distante, que não via há várias décadas, não teria herdado nada e coisa alguma.

Categorias:Sucessões

DOAÇÃO INOFICIOSA: Qual prazo para declarar a nulidade? Quando termo inicial?

17/ março / 2021 Deixe um comentário

Para começo de conversa, é preciso esclarecer que o patrimônio sofre limitações quanto à doação.

Como é isso? O dono não pode doar os bens que adquiriu com tanto esforço?

Isso mesmo. A lei impõe limitações para doação. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador (art. 548 do CC). Da mesma forma, é nula também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.

Como se percebe, as limitações relacionadas ao quantum da doação visam proteger os herdeiros necessários (sucessão legítima) e para que o doador não fique vulnerável.

Assim, doação inoficiosa é aquela que excede a parte de que o doador poderia dispor, no momento da liberalidade, em testamento.

SE LIGA! Será inoficiosa apenas na parte que se mostre superior à legítima dos herdeiros necessários, pois, havendo herdeiros necessários, uma pessoa somente poderá dispor em testamento da metade dos seus bens – Art. 1789 d Código Civil. Tal vedação é aplicável para o testamento e para a doação que busca frustar a sucessão legítima dos herdeiros necessários

A doação inoficiosa alcança com a sanção de nulidade qualquer donatário, seja ele um terceiro ou o próprio herdeiro, legítimo ou necessário que tenha recebido gratuitamente mais do que o permitido pela lei.

OLHA SÓ! O terceiro adquirente não será atingido pela declaração judicial de nulidade se estiver de boa-fé (art. 1.360 do Código Civil). Daí, o herdeiro necessário buscará indenização em face do donatário que se beneficiou com a doação inoficiosa.

Por fim, registra-se que não se devem computar doações que foram realizadas pelo doador antes da existência do herdeiro necessário.

Daí, surge o questionamento: A doação que supera a parte disponível (que viola a legítima) é nula ou anulável? A doação inoficiosa é nula tão somente na parte em que supera o limite da parte disponível. Como parâmetro, o excesso é calculado tomando-se por base o valor que os bens doados tinham, no momento da liberalidade (art. 2.007, § 1º, do CC).

Então seria possível a realização de várias doações sucessivas, desde observando a metade disponível no momento de cada doação?

Com o fito de fraudar à lei, possa ser que o doador decida, através de pequenas doações que acumuladas superarem a parte disponível total. Se isso acontecer, o juiz deverá levar em consideração todas as liberalidades, a fim de aferir se a doação configura ou não uma doação inoficiosa.

Quando o donatário for herdeiro necessário, essa situação possibilita que, em vez de se reconhecer a invalidade da doação com o efeito natural do retorno ao estado anterior, se faça a redução da liberalidade até adequá-la ao patamar de validade da disposição no limite da metade dos bens do doador (Art. 2.007 do Código Civil).

Superadas as linhas, qual o prazo para requerer a declaração da nulidade da doação ou redução da parte que superou a parte disponível?

O prazo prescricional para requerer a nulidade da doação juntamente com a petição de herança é de 10 anos (art. 205 do CC).  “aplica-se às pretensões declaratórias de nulidade de doações inoficiosas o prazo prescricional decenal do CC/2002, ante a inexistência de previsão legal específica. Precedentes” (STJ, REsp 1.321.998/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.08.2014).

Quando inicia a contagem do prazo?

Via de regra, o prazo é iniciado quando ocorre a abertura da sucessão (morte do falecido), pois é aí que surge o direito à herança.

Todavia, existem situações em que a qualidade de herdeiro não foi reconhecida, como por exemplo, um filho que não foi reconhecido. Neste caso, é necessária a propositura da ação de investigação de parentalidade post mortem.

Assim, quando o vínculo parental for reconhecido por sentença, o prazo decenal para decretação terá início somente a partir do trânsito em julgado da ação que reconhecer a parentalidade. Confira o entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ – REsp: 1605483 MG, Relator: Paulo de Tarso Sanseverino, Data do julgamento:23/02/2021:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. SUCESSÕES. AÇÃO DE NULIDADE DE DOAÇÃO INOFICIOSA E PARTILHA DE BENS, CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. FILIAÇÃO RECONHECIDA E DECLARADA APÓS A MORTE DO AUTOR DA HERANÇA. PRAZO PRESCRICIONAL. TERMO INICIAL. TEORIA DA ‘ACTIO NATA’ EM SEU VIÉS SUBJETIVO. DATA DO TRÂNSITO EM JULGADO DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE.

1. Controvérsia acerca da definição do termo inicial do prazo para o ajuizamento da ação de redução inoficiosa por herdeiro necessário cuja filiação foi reconhecida apenas após a morte do “de cujus”.

2. Nas hipóteses de reconhecimento “post mortem” da paternidade, o prazo para o herdeiro preterido buscar a nulidade da partilha e reivindicar a sua parte na herança só se inicia a partir do trânsito em julgado da sentença proferida na ação de investigação de paternidade, quando resta confirmada a sua condição de herdeiro. Precedentes específicos desta Terceira do STJ.

3. Aplicação excepcional da teoria da “actio nata” em seu viés subjetivo, segundo a qual, antes do conhecimento da violação ou lesão ao direito subjetivo pelo seu titular, não se pode considerar iniciado o cômputo do prazo prescricional.

4. Plena aplicabilidade desta orientação às pretensões de anulação de doação inoficiosa proposta por herdeiro necessário cuja filiação ainda não era reconhecida ao tempo da liberalidade.

5. Tempestividade do ajuizamento da ação de petição de herança em 26/08/2010, ou seja, quando ainda não havia transcorrido o prazo prescricional vintenário do art. 177 do Código Civil de 1916, ordinariamente aplicado a esta pretensão, contado da data da abertura da sucessão, em 22/07/2002, ou do art. 205 do Código Civil de 2002, na forma do seu art. 2028.

6. Direito da autora de ver conferido o valor das doações recebidas pelos seus irmãos que permanece hígido, ainda que se considere prescrita a pretensão de anulação da doação impugnada, uma vez que a colação constitui dever legal imposto ao descendente donatário que se protrai para o momento da abertura da sucessão, nos termos do art. 1.786 e seguintes do Código Civil.

7. Fundamento autônomo apto a manter as conclusões do acórdão recorrido. 8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

CONCLUSÃO: A doação inoficiosa é aquela que supera a parte disponível do doador. Sò há que se falar em doação inoficiosa quando existem herdeiros necessários. Tal doação é nula quanto à parte que supera a parte disponível. O prazo para declaração da nulidade é de 10 (dez) anos. O prazo inicia no momento da abertura da sucessão. Todavia, em apreço à Teoria da Actio Nata, o termo inicial será do transito em julgado da sentença que reconhecer a parentalidade post mortem.

Categorias:Geral, Sucessões