O testamento vital é um testamento?
O testamento é um negócio jurídico unilateral, solene, personalíssimo e revogável, pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou pessoal, para produzir efeitos depois de sua morte (causa mortis).
Por testamento pode-se criar uma fundação (art. 62 do CC), instituir um condomínio edilício (art. 1.332 do CC) ou uma servidão (art. 1.378 do CC), bem como criar bem de família voluntário ou convencional (art. 1.711 do CC.
Ser um negócio causa mortis implica que a eficácia do testamento apenas se verifica quando do falecimento do testador, ou seja, a morte é o que determina a eficácia do testamento.
Não ocorrendo a revogação do testamento ou rompimento, o documento será válido e produzirá todos os efeitos a partir da morte do testador.
Pois bem. E o Testamento vital (vidal)?
O testamento vital é uma espécie de diretriz antecipada de vontade e tem por objetivo informar a vontade da pessoa sobre tratamentos médicos a receber ou que pretende recusar.
Importado do direito americano, É um documento no qual a pessoa deixa expressa sua vontade em casos extremos de saúde. Por exemplo: o desejo de não ser mantido vivo por aparelhos ou de não receber transfusão de sangue.
Nos EUA, existem as DIRETRIZES ANTECIPADAS DA VONTADE são: a) “testamento vital” – escolha de não se submeter a tratamentos fúteis (inúteis, que apenas adiam o inadiável); b) “mandado duradouro” – Escolha de um representante; e c) “História de valor” – o declarante presta algumas informações sobre seus comportamentos e valores de vida que irão nortear o médico na atuação.
Ora, se o testamento é um documento que possui eficácia após a morte, já podemos perceber que o testamento vital não é um testamento (rssrs). Na verdade, o termo testamento vital é tradução equivocada do do inglês “living will”.
Há previsão legal no Brasil?
Não há previsão legal sobre o testamento vital no Brasil. O fundamento utilizado para a diretriz antecipada da vontade é que seria uma manifestação dos direitos da personalidade.
Nos termos do Art. 15 do Código Civil, “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
Assim, diante do dever de informação do profissional de saúde (consentimento informado), o paciente pode exercer sua autonomia existencial de escolher não fazer um tratamento, fazer ou limitar alguns tratamentos.
Curiosamente, a única regulamentação brasileira é a Resolução do Conselho Federal de Medicina 1995/2012 – CFM. Isso mesmo, não temos lei sobre isso. Como consabido (meu pitaco), o Congresso Nacional se omite em qualquer tema polèmico e prefere silenciar do que atuar diante de uma necessidade social. O tema morte ainda é culturalmente muito reticente no Brasil, seja pelas questões culturais, o “medo da morte”, “religiosidade” etc.
E a doutrina?
Na doutrina, podemos encontrar dois enunciados que aceitam o instituto:
Enunciado 528 da V Jornada do CJF afirma que “É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade”.
Enunciado 37 – I Jornada de Direito da Saúde, dispõe que “As diretivas ou declarações antecipadas de vontade que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito”.
SE LIGA! As diretrizes antecipadas de vontade só podem ser aplicadas em situações extremas de saúde (terminalidade da vida).
Qual a relação do testamento vital com o Direito Penal?
Antes, esclareça-se que o testamento vital não possui caráter vinculante, pois o médico tem o Código de Ética para sua atuação e, além disso, pode sofrer responsabilidade civil e penal.
Pensemos, caso exista previsão da ortotanásia no testamento vital, não haveria problema algum, uma vez que tal conduta é atípica no direito brasileiro. Por oportuno, ortotanásia é a conduta que os médicos tomam quando — ao ver que o estado clínico do paciente é irreversível e que sua morte é certa — permitem que o paciente faleça, a fim de poupar-lhe mais sofrimento
Lado outro, a previsão de eutanásia ou auxílio suicídio consentido, não poderia sequer ser ventilada pelo médico, pois este estaria incurso na prática de crime, previstos no artigo 121, §1º e artigo 122 do Código Penal, respectivamente. Eutanásia consiste na interrupção da vida, de forma ativa. É a ação de se interromper ativamente a vida do paciente, priorizando sua dignidade, ao tentar reduzir seu sofrimento, em detrimento de sua longanimidade.
Portanto, o testamento vital não é um testamento, mas sim uma espécie de diretriz antecipada de vontade e seu conteúdo, em algum caso, eventualmente não pode ser sequer ser considerado pelo médico, em razão da configuração da responsabilização penal.
ANEXO
RESOLUÇÃO CFM nº 1.995/2012
(Publicada no D.O.U. de 31 de agosto de 2012, Seção I, p.269-70)
Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, e
CONSIDERANDO a necessidade, bem como a inexistência de regulamentação sobre diretivas antecipadas de vontade do paciente no contexto da ética médica brasileira;
CONSIDERANDO a necessidade de disciplinar a conduta do médico em face das mesmas;
CONSIDERANDO a atual relevância da questão da autonomia do paciente no contexto da relação médico-paciente, bem como sua interface com as diretivas antecipadas de vontade;
CONSIDERANDO que, na prática profissional, os médicos podem defrontar-se com esta situação de ordem ética ainda não prevista nos atuais dispositivos éticos nacionais;
CONSIDERANDO que os novos recursos tecnológicos permitem a adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente em estado terminal, sem trazer benefícios, e que essas medidas podem ter sido antecipadamente rejeitadas pelo mesmo;
CONSIDERANDO o decidido em reunião plenária de 9 de agosto de 2012,
RESOLVE:
Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
- 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.
- 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.
- 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.
- 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente
- 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.