VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM NO PROCESSO PENAL: Pode faltar interesse recursal ao Ministério Público?
O Ministério Público pode recorrer contra sentença prolatada em perfeita harmonia com o pedido feito pelo Parquet?
O referencial para a resposta é o parágrafo único do artigo 577 do Código de Processo Penal, o qual dispõe: “Não se admitirá, entretanto, recurso da parte que não tiver interesse na reforma ou modificação da decisão”. Isto é, o interesse de agir é indispensável para a interposição do recurso.
Ora, o recorrente não pode manifestar insatisfação diante da decisão judicial que justamente atendeu o seu pedido, uma vez que o julgador simplesmente acolheu a manifestação do Parquet.
Bem verdade, o processo penal não se compraz com comportamentos contraditórios (“venire contra factum proprium”). Destarte, a parte não pode ter manifestação recursal contrária ao pedido feito anteriormente, sob pena de atentar contra a segurança jurídica no processo.
No Processo Penal, o Ministério Público não pode ter manifestação diferente nos autos, uma vez que a opinião do Estado-Acusador já se manifestou em determinado sentido, sem que nenhum fato novo tenha ocorrido.
Não se ignora manifestações subscritas por membros diferentes, todavia, elas não podem destoar, na medida em que ambos representam uma única parte: O Ministério Público. Registra-se, ainda, que a indivisibilidade é princípio institucional do Ministério Público (Artigo 127, parágrafo primeiro, da CRFB). Em outras palavras, os membros do Parquet substituem-se entre si, zelando pela opinião do órgão, não de seus membros.
Eventual argumento da atuação fundada na independência funcional não prospera, uma vez que a segurança jurídica e a boa-fé e demais princípios norteadores da relação processual – especialmente o artigo 577 do CPP – transcendem as questões institucionais e opiniões do membro do Ministério Público. Não se despreza o princípio da independência funcional, mas atenta-se para o fato que este já foi efetivado, de sorte que já houve preclusão consumativa para a acusação.
Neste sentido, leciona Fernando Capez, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo:
“Não pode, portanto, a nosso ver, recorrer o Ministério Público, se o seu pedido formulado nas alegações finais, seja pela condenação, seja pela absolvição, tiver sido integralmente acolhido pelo juiz na sentença. O problema aqui é puramente de falta de sucumbência e, por conseguinte, de interesse recursal (no mesmo sentido: TACrimSP, 2ª Câm., Agravo de Execução n. 571.187-3, São Paulo, rel. Haroldo Luz, j. 1º-6-1989, Julgados do TACrimSP, Lex, 98/42).” (CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 2014. Edição digital; página 606).
Na mesma linha, Renato Brasileiro de Lima, Procurador da Justiça Militar afirma:
“A contrario sensu, se o órgão ministerial pugnar pela absolvição do acusado, sendo proferido decreto absolutório nos exatos termos em que pleiteado pelo órgão ministerial, significa dizer que não houve sucumbência, pois o pedido ministerial foi acolhido pelo juízo. Logo, não haverá interesse de agir por parte do Ministério Público. Apesar de não haver consenso na doutrina, pensamos que, na hipótese, não haverá interesse de agir por parte do Ministério Público, ainda que a apelação seja interposta por membro diverso. É sabido que, entre os princípios fundamentais do Ministério Público, expressos no artigo 127, parágrafo primeiro, da Constituição Federal de 1988, figuram a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, de onde se extrai que os membros do Parquet integram um só acórdão, sob a mesma direçao, podendo, todavia, serem substituídos uns pelos outros sem que haja alteração subjetiva na relação jurídico processual, não havendo hierarquia funcional entre eles, concluindo-se, portanto, que, mesmo atuando em nome de um único órgão, os Membros do Ministério Público que se substituírem no processo, não estão vinculados às manifestações anteriores apresentadas pelos seus antecessores. Os princípios acima explicitados, todavia, não podem se contrapor ao disposto no parágrafo único do artigo 577 do Código de Processo Penal, no sentido de que “Não se admitirá, entretanto, recurso da parte que não tiver interesse na reforma ou modificação da decisão”. Ora, se não houve sucumbência, porquanto o pedido absolutório formulado pelo Promotor de Justiça foi acatado pelo magistrado, não haverá interesse de agir por parte do Ministério Público, ainda que a apelação seja interposta por membro diverso (cita entendimento do STJ, 5ª Turma, HC 171.306/RJ). LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Editora Juspodivm. 2ª edição. 2014. P. 1600). Grifo nosso
Como se vê, a doutrina respalda o entendimento apresentado, de forma que o recurso interposto diante de sentença que acolheu o pedido ministerial não pode ser conhecido, na medida em que não houve sucumbência, isto é, o recorrente carece de interesse recursal.