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Um grito amazonês pelo fim do Apartheid linguístico

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Por Maurilio Casas Maia – Defensor Público Estadual (DP-AM) e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Estado do Amazonas

Sérgio Freire – doutor em Linguística pela Unicamp-SP –, lançou há alguns anos o livro “Amazonês: expressões e termos usados no Amazonas”. O livro é um resgate da linguagem popular amazonense, conhecida como “amazonês”. Foi um trabalho árduo para a coleta de cerca de 1.110 verbetes.

Nessa mesma toada, sobreveio em 28 de novembro de 2012, o projeto de Lei Ordinária nº. 341/2012*, de autoria do deputado Wanderley Dallas (AM), projeto esse hoje causador de polêmica por conta da exposição, enquanto patrimônio cultural de natureza imaterial, de cerca de 1.000 verbetes populares tipicamente amazonenses – dentre os quais alguns termos que, na linguagem do cotidiano amazônico, podem designar sexo, partes íntimas e outras palavras reveladoras de intimidades. Foi o bastante para que algumas alas da sociedade criticasse o projeto por oficializar linguagem “chula”.

Nesse ponto, pede-se a licença para iniciar uma breve analogia entre a missão do polêmico projeto de lei e o atuar defensorial. Isso porque a Defensoria Pública é instituição, assim como o projeto ora comentado, muitas vezes mal compreendida pela sociedade (sem sentido amplo) por suas atuações em prol da população vulnerável e necessitada.

A Defensoria Pública, cuja origem remota pode ser vista Tribuna da Plebe da República Romana – como bem recordou Anderson Silva da Costa, professor e analista (TJ-AM) –, é hoje por alguns estudiosos chamada de “amicus communitas” (Daniel Gerhard – UFAM) e “custos vulnerabilis” (Maia) “et plebis” (Camilo  Zufelato – USP). A missão defensorial é, antes de tudo, garantir que a “voz” dos excluídos seja ouvida, valorizada e dignificada. Trata-se de inclusão democrática.

Nesse sentido, destaca-se que o projeto de lei n. 341/2012 (ALEAM) – afinado com a Lei Federal n. 12.343/2010 (“Institui o Plano Nacional de Cultura – PNC”) –, tem por finalidade proporcionar o reconhecimento da linguagem popular amazonense, representando isso uma medida de inclusão social (e cultural), desafiadora do preconceito e do “Apartheid linguístico” que sofrem camadas não prestigiadas da sociedade, mais vulneráveis à exclusão do jogo democrático. Portanto, o projeto de lei está à altura dos antigos tribunos da plebe, cujo atuar incomodava as elites da época, mas tudo no afã de garantir inclusão social aos plebeus. O PL é digno da visão dos guardiões dos vulneráveis e do povo necessitado de igualdade cultural. Repudiar o projeto é, assim, menosprezar as raízes da população amazonense, principalmente os pobres.

O projeto comentado é oportunidade e estopim para a oficialização dos estudos sobre as peculiaridades linguísticas do povo amazonense e deve servir de exemplo. É também um pedido de atenção dirigido ao povo brasileiro para a cultura rústica, rica e peculiar do homem amazônico – não os que rodeiam a alta sociedade, mas sim o cidadão em meio à massa populacional, pois este também quer “ter voz, ter vez e lugar”.

Na verdade, longe de ser obsceno – como alguns cogitaram –, o referido projeto de lei (PL) é visibilidade para a cultura de uma população, antes invisível. É o reconhecimento da cultura do diferente; é um pouco de Paulo Freire e também Boaventura de Sousa Santos; é “amicus communitas”. Sim. É um PL “amigo” da comunidade popular, propondo inclusão e visibilidade à cultura do legítimo caboclo.

Restaurar a dignidade de todas as populações é missão de todas as funções e poderes do Estado. O que para os privilegiados da cultura dominante é um ato de desprestígio à atividade legislativa, será para outros tantos o início da caminhada pelo reconhecimento da identidade popular e pela redução das marginalizações. O status quo odeia ser (re)movido e isso explica muito da pressão social contrária ao o Projeto de Lei.

É preciso lembrar: “Porto de Lenha, tu nunca serás Liverpool”. É necessário orgulhar-se das raízes, da memória cultural, dos costumes, da cultura plural e da(s) identidade(s). É o mínimo que se pode esperar de cada cultura única dos infindáveis rincões brasileiros, de norte a sul. Um país de dimensões continentais, como o Brasil, jamais poderia prestigiar uma só cultura.

Sou caboclo. Também sou um pouco índio, um pouco negro e um pouco branco – e você?

O Brasil de muitas “raças” é o mesmo Brasil de muitas culturas e também de muitas variantes vocabulares. E viva a Democracia!

*Dispõe o artigo 1º do referido projeto: “Art. 1.º Fica reconhecida como patrimônio cultural de natureza imaterial para o Estado, a linguagem regional, nos termos do art. 206, da Constituição do Estado do Amazonas.”

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