Com a palavra, Amilton Bueno de Carvalho.
Estou a escrever no momento em que a atuação da Defensoria Pública sofre ataques judiciais oriundos de forças que, desde meu olhar, têm dificuldade de entender o novo abalador do antigo modelo. Um pouco mais direto: os amantes do passado, as viúvas do antigo (exemplos: a busca de deslegitimar a Defensoria para proposição de ação civil pública; ação de improbidade administrativa proposta contra Defensores que “ousaram” defender em juízo uma delegada de polícia; ataques judiciais à autonomia da Defensoria).
Desde algum tempo, em muito, o papel da Defensoria Pública desperta em mim agressivo interesse. As razões? Não tenho clareza. Mas, no momento unicamente consciente imagino que tudo se deu porque, como magistrado, tive oportunidade de testemunhar o desenvolvimento da Defensoria Pública gaúcha desde sua “inexistência”, quando não estruturada, até o momento em que, via concursos sérios, transformou-se espetacularmente com a vinda de defensores absolutamente qualificados (evidente que, por óbvio, em ambos os momentos exceções se fazem presentes) – a partir desse momento, notou-se que os “esgualepados” começaram a ser defendidos com toda dignidade possível (não reside aí a causa da ira despertada nos amantes do velho? Ora, diriam: “só falta isso: defesa digna para os “indignos” de viver”).
Em tal contexto, e o faço desde o olhar do direito penal (por favor, eventual leitor, que isso fique claro), tenho que a Defensoria pode representar o novo no espetáculo jurídico: se sabe para que (não) veio o Judiciário, se sabe para que (não) veio o Ministério Público, mas para que virá a Defensoria? Será efetivamente o novo ou será mais um ente burocrático, um nada que levará a lugar nenhum a não ser dar alguma projeção e razoáveis subsídios aos seus integrantes? Será que ela vai ambicionar ficar perto do “trono” – o poder sempre procura cooptar aqueles que lhe pode arranhar -, mas diz Nietzsche, como já denunciei no meu “Direito Penal a Marteladas”, “com frequência a lama se acha no trono – e, também com frequência, o trono se acha na lama” (p. 27)?
Aliás, a Defensoria que sonho não quer ser poder, não quer estar ao lado do poder, não quer chegar próximo do poder, não pode ser poder, ela tem claro que todo o poder tende insuportavelmente ao abuso, que o poder “imbeciliza” (Nietzsche), que o poder não suporta a alteridade, que o poder necessita, em consequência, de verdade absoluta (Bauman), que o poder necessariamente é mentiroso (Heidegger). Ao contrário, a Defensoria deve ser contrapoder (Daniel Lozoya), limitadora do abuso do poder, parceira do débil!
Também não pode se transformar em instituição meramente assistencialista (ingênua, por certo), que tem o povo com coitadinho, necessitando de espelhos e esmolas – inibindo a luta da população excluída para que ela por si mesma possa ser a construtora de sua história. Essa é a militância do “bom” burocrata: mantenedora inconsciente da alienação-dominação.
Talvez (para mim a vida tem se constituído apenas em “talvezes”) o norte para aqueles que buscam abandonar o velho, seja a lição do precioso pensador francês André-Jean Arnaud: “Se tens uma teoria, se estás disposto a correr riscos, se és militante, então és um jurista do século XXI” (“Magistratura e Direito Alternativo”, p. 137, 7ª. Ed.).
Militância, na linha de Arnaud, parece ser um dos caminhos do Defensor. Mas, militância em que sentido?
Nietzsche dá um sentido para essa palavra-chave: “Não temos nenhum direito de viver hoje se não formos militantes, militantes que preparam um século vindouro, do qual podemos adivinhar alguma coisa em nós através de nossos melhores instantes: pois esses instantes afastam-nos do espírito de ‘nosso’ tempo: em tais instantes sentimos algo dos tempos que virão” (“Wagner em Bayreuth”, p. 27, trecho da carta a Gersdorff).
O devir, preparadores do futuro (pontes entre o homem e o além-do-homem na linguagem nietzschiana), lutadores para que o valor vida digna se faça presente para todos, absolutamente todos, e não apenas para alguns adocicados perfumados – asquerosos mantenedores, conscientes ou não, da dominação e da demonização do débil que impera no espaço judicial e busca manter tudo rigorosamente como está.
O que essa militância gera? Riscos diz Arnaud, por certo riscos, mas isso é o que demonstra a seriedade e a correção da atuação dos Defensores Públicos. Imaginar que uma Defensoria digna possa receber aplausos dos que estão ao redor do “trono”, é tê-la como incompetente, ineficiente, indigna: mais uma instituição asquerosa.
A militância gera sim sofrimento, angústia, mal-estar, incompreensão. Mas, se não for para isso, melhor voltar ao passado quando os “defensores” sequer eram concursados. Tais dores, porém, são as do parto, da gestação de novas possibilidades democratizantes. Nietzsche, vez mais, demonstra a necessidade do sofrimento que alcança o homem que é “corda” entre o macaco e o além-do-homem e imposição da resistência:
“A tais homens, ‘que me importam de algum modo’, eu desejo sofrimentos, abandono, doença, abuso, desonra – desejo que o mais profundo desprezo de si, o martírio da desconfiança em relação a si, a miséria do superado não permaneçam desconhecidos para eles: não tenho nenhuma compaixão por eles, porque lhes desejo a única coisa que pode demonstrar hoje se alguém possui VALOR ou não – QUE ELE RESISTA…” (Fragmentos Póstumos, 1885-1887, p. 423).
Ou seja, há o desprazer do prazer, por isso penso que ser Defensor não é o caminho para qualquer-um, talvez um profissional do amanhã, que nasceu póstumo. Alguma pista que busco em Nietzsche talvez possa apontar para a missão defensiva (aqui alcança também todo o advogado criminal).
Ser homem? Não, diz ele: “Eu não sou homem, eu sou dinamite” (Ecce Homo, p. 144).
Ser conivente com a fúria persecutória que assola nossa realidade ou destruidor de tal lógica? “- e quem quiser ser um criador, no bem e no mal, tem de ser, antes de tudo, um destruidor e arrebentar valores.” (p. 145).
Entregar-se ao discurso da covardia dos que enxergam “eles” como os maus a serem destruídos via cárcere para que os “nós, bons” sejamos “felizes”? Ora, ” – quanto mais mediano, mais fraco, mais submisso e covarde é um homem, tanto mais coisas ele estipulará como ‘más’: para ele, o reino do mal é o mais abrangente. O homem mais baixo verá o reino do mal (isto é, do que lhe é proibido e hostil), por toda parte.” (Fragmentos Póstumos, 1885-1987, 9(138), p. 342).
Agressões deverão vir (não se espere que “bondade” venha do trono, ou venha daqueles que estão acocorados ao seu redor), mas que venham e que venham cada vez mais: eis o sinal que o caminho está sendo seguido corretamente.
E não esperem covardia, pois na: “Na luta contra os ‘grandes homens’ há muita razão. Esses homens são perigosos, acasos, exceções, tempestades, eles são fortes o suficiente para colocar em questão o que foi lentamente construído e fundamentado, homens que se mostram como pontos de interrogação com vistas àquilo em que se acredita firmemente.” (Fragmentos Póstumos, 1887-1889, p. 435).
Amilton, outono de 2015.