É POSSÍVEL PRONÚNCIA FUNDAMENTADA EXCLUSIVAMENTE EM ELEMENTOS COLHIDOS NO INQUÉRITO POLICIAL?
Para começo de conversa, lembremos que o Procedimento do júri é bifásico (ou escalonado)
Na primeira fase, há o recebimento da denúncia e se estende até a decisão de pronúncia
Na segunda fase, após a pronúncia o processo atinge seu termo no julgamento em plenário.
Encerrada a primeira fase do procedimento do Júri – denominada instrução preliminar –, se convencido da materialidade do crime e da existência de indícios de autoria, o juiz pronuncia o réu (art. 413 do CPP).
Vale dizer que outras 3 (três) decisões podem ser tomadas ao fim da primeira fase do júri.
Impronúncia – Quando o juiz não se convencer da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação (art. 415 do CPP).
Absolvição Sumária – O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando provada a inexistência do fato; provado não ser ele autor ou partícipe do fato; O fato não constituir infração penal; demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. (art. 416 do CPP).
Desclassificação – Quando o juiz se convencer que o crime não é doloso contra a vida, remeterá os autos ao juiz competente (art. 419 do CPP).
De volta à pronúncia, a materialidade é comprovada por meio do respectivo exame de corpo de delito, desde que, nos termos do art. 158 do CPP, deixe vestígios a infração penal.
Lado outro, indícios de autoriasão suficientes para que o juízo de admissibilidade seja preenchido. Todavia. Indícios são fatos conhecidos que, por sua força e precisão, são capazes de determinar uma só conclusão: a de que não foi outro se não o indiciado o autor ou cúmplice do fato criminoso”
Na primeira fase do júri, ocorre o recebimento da denúncia, apresentação da resposta à acusação e uma audiência de instrução(art. 411 do CPP: “proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e procedendo-se o debate”.
Como se vê, a audiência é a oportunidade para reafirmar, agora em juízo, indícios de autoria que fundamentaram a própria denúncia. Decerto, a primeira fase do júri é um filtro para que qualquer pessoa, sem mínimo lastro probatório, verificado em contraditório, seja levada ao júri popular.
Nessa toada, os tribunais superiores afirmam que os indícios que compõem a pronúncia não podem ser exclusivamente originados do inquérito policial, na medida em que anularia a relevância da instrução preliminar e igualaria a pronúncia à decisão que recebe a denúncia.
Confira a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
“A atual posição do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema admite a pronúncia do acusado com base em indícios derivados do inquérito policial, sem que isso represente afronta ao art. 155 do Código de Processo Penal (HC 547.442/MT, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 15/4/2020).
Assim, na linha dos precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal, embora não seja possível sustentar uma condenação com base em prova produzida exclusivamente na fase inquisitorial, não ratificada em juízo, tal entendimento não se aplica à sentença de pronúncia (HC 314.454/SC, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 17/2/2017).
E o Supremo Tribunal Federal?
O Supremo Tribunal Federal (HC 180.144/GO, Ministro Celso de Mello, DJe 22/10/2020) enfrentou a questão e decidiu pela impossibilidade do juízo de pronúncia baseada de forma exclusiva em elementos informativos, na medida em que o processo penal se estrutura sobre as garantias e objetiva resguardar do arbítrio estatal o status libertatis do acusado:
“O sistema jurídico-constitucional brasileiro não admite nem tolera a possibilidade de prolação de decisão de pronúncia com apoio exclusivo em elementos de informação produzidos, única e unilateralmente, na fase de inquérito policial ou de procedimento de investigação criminal instaurado pelo Ministério Público, sob pena de frontal violação aos postulados fundamentais que asseguram a qualquer acusado o direito ao contraditório e à plenitude de defesa. Doutrina. Precedentes. Os subsídios ministrados pelos procedimentos inquisitivos estatais não bastam, enquanto isoladamente considerados, para legitimar a decisão de pronúncia e a consequente submissão do acusado ao Plenário do Tribunal do Júri. O processo penal qualifica-se como instrumento de salvaguarda da liberdade jurídica das pessoas sob persecução criminal. Doutrina. Precedentes. A regra “in dubio pro societate” – repelida pelo modelo constitucional que consagra o processo penal de perfil democrático – revela-se incompatível com a presunção de inocência, que, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, tem prevalecido no contexto das sociedades civilizadas como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana” (HC 180.144/GO, j. 10/10/2020).
O entendimento do Suprema Corte parte da ausência de amparo constitucional e legal do princípio do in dubio pro societate no sistema processual penal brasileiro pós constituição de 1988.
De outro giro, o princípio da presunção de inocência, art. 5º, LVII, da Constituição Federal, em todo seu alcance, como norma de tratamento, norma probatória e norma de juízo, incumbe ao órgão acusador comprovar o alegado em todas as fases e procedimentos.
Assim, o contraditório e a ampla defesa (e no caso do júri de plenitude de defesa) concretizam o contraditório e a ampla defesa, de forma que impedem a pronúncia com base exclusiva em elementos produzidos no inquérito policial, nos termos do art. 155 do Código de Processo Penal.
De fato, admitir que a pronúncia se baseie em provas produzidas no inquérito igualaria em densidade à decisão de recebimento de uma denúncia.
O procedimento do jus accusationis – arts. 406 e 421 do Código de Processo Penal – disciplina toda a produção probatória destinada a embasar o deslinde da primeira fase do procedimento. Assim, evita-se submissão dos acusados ao Conselho de Sentença de forma temerária, não havendo razão de ser em tais exigências legais, fosse admissível a atividade inquisitorial como suficiente.
Como se vê, é incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito admitir que os jurados possam condenar alguém, com base em íntima convicção, em julgamento que sequer deveria ter sido admitido. Os julgamentos proferidos pelo Tribunal do Júri possuem peculiaridades em permanente discussão, até mesmo nos Tribunais Superiores, a respeito da possibilidade de revisão dos julgamentos de mérito, da extensão dessa revisão, o que torna, mais acertado exigir maior rigor na fase de pronúncia” (HC 589.270, j. 23/02/2021).
Portanto, É INADMISSÍVEL A PRONÚNCIA FUNDAMENTADA EXCLUSIVAMENTE EM ELEMENTOS COLHIDOS NO INQUÉRITO POLICIAL.