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QUAL PORTE DE ARMA DE FOGO É CRIME HEDIONDO? (Lei n. 13.964/19)
Para começo de conversa, o conceito de arma de uso permitido, restrito ou proibido atualmente se encontra previsto no Decreto nº 9.847, de 25 de junho de 2019 (confira no fim do texto).
Saber diferenciar é essencial para a adequação aos diversos crimes previstos no Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03), inclusive quanto a hediondez ou do delito.
Após idas e vindas, hoje, segundo a Lei n. 13964/19, apenas a porte de arma de uso proibido é considerada crime hediondo.
Ainda, em 2020, dei um pitaco sobre o tema (https://helomnunes.com/2020/04/07/o-art-16-do-estatuto-do-desarmamento-e-a-hediondez/). Na oportunidade, afirmei que, após a vigência da Lei n. 13964/2019, apenas o tratamento hediondo alcançaria apenas às condutas relacionadas às armas de uso proibido (art. 1º, parágrafo único, II, da Lei n. 8072/90 – redação atual). Assim, a figura equiparada de “modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso restrito (Art. 16, §1º, II, da Lei n. 10826/03) não poderiam ser consideradas hediondas, uma vez que o próprio uso da arma de uso restrito não é crime hediondo, após a redação da Lei n. 13964/19.
Sendo a arma de uso permitido, a posse sem autorização enquadra-se no art. 12, enquanto que o porte no art. 14 do Estatuto.
Na redação original da Lei nº 10.826/03, a posse ou porte de arma de uso restrito ou proibido se adequa ao art. 16, que tem a pena mais grave. Sob essa redação, foi incluído no rol do crime hediondos, pela Lei nº 13.494/17, que alterou a Lei nº 8.072/90, a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito.
Com base nesse dispositivo, entendeu o STJ que as hipóteses trazidas no §1º do art. 16, entre elas a supressão ou alteração de numeração, também seriam crimes hediondos, ainda que a arma fosse de uso permitido.
Acontece que a situação mudou com a Lei nº 13.964/19 (Pacote Anticrime)! O art. 16 do Estatuto do Desarmamento, caput, passou a abranger unicamente a arma de uso restrito (Pena – Reclusão de 3 a 6 anos e multa).
E o porte de arma de uso proibido? Passou ser hipótese qualificada, prevista no §2º. (Pena – Reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos)
O Pacote Anticrime alterou, ainda, a Lei nº 8.072/90, passando para crime hediondo somente posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido.
Agora, tal entendimento foi confirmado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, oportunidade em que, afirmou: O crime de posse ou porte de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado não integra o rol dos crimes hediondos.
Confira a nova redação do artigo 16 da Lei n. 10.826/03 (Redação dada pela Lei n. 13964/19).
Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito
Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;
(…).
§ 2º Se as condutas descritas no caput e no § 1º deste artigo envolverem arma de fogo de uso proibido, a pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.
Diante da inovação legislativa, a Sexta Turma do STJ entendeu, em HC interposto pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, que o crime de posse ou porte de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado (figura equiparada ao porte de arma de uso restrito, nos termos do artigo 16, §1º, I, da Lei n. 10826 atualizada) não integra o rol dos crimes hediondos.
Segundo o STJ, a intenção da alteração legislativa buscou punir com maior gravidade o uso do armamento proibido, bem como se ter como norte, ao interpretar normas de execução penal, no caso o obscuro art. 1º, parágrafo único, da lei nº 8.072/90, o princípio da humanidade das penas.
HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. ART. 16, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO IV, DA LEI N.º 10.826/2003. CONDUTA PRATICADA APÓS A VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.497/2017 E ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.964/2019. PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA. NATUREZA HEDIONDA AFASTADA. ORDEM CONCEDIDA.
1. Os Legisladores, ao elaborarem a Lei n. 13.497/2017 – que alterou a Lei de Crimes Hediondos – quiseram conferir tratamento mais gravoso apenas ao crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso proibido ou restrito, não abrangendo o crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso permitido.
2. Ao pleitear a exclusão do projeto de lei dos crimes de comércio ilegal e de tráfico internacional de armas de fogo, o Relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, então Senador Edison Lobão, propôs “que apenas os crimes que envolvam a utilização de armas de fogo de uso restrito, ou seja, aquelas de uso reservado pelos agentes de segurança pública e Forças Armadas, sejam incluídos no rol dos crimes hediondos”. O Relator na Câmara dos Deputados, Deputado Lincoln Portela, destacou que “aquele que adquire ou possui, clandestinamente, um fuzil, que pode chegar a custar R$ 50.000, (cinquenta mil reais), o equivalente a uns dez quilos de cocaína, tem perfil diferenciado daquele que, nas mesmas condições, tem arma de comércio permitido”.
3. É certo que a Lei n. 13.964/2019 alterou a redação da Lei de Crimes Hediondos, de modo que, atualmente, se considera equiparado a hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei n.º 10.826/2003.
4. Embora o crime ora em análise tenha sido praticado antes da vigência da Lei n.º 13.964/2019, cabe destacar que a alteração na redação da Lei de Crimes Hediondos apenas reforça o entendimento ora afirmado, no sentido da natureza não hedionda do porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.
5. No Relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho destinado a analisar e debater as mudanças promovidas na Legislação Penal e Processual Penal pelos Projetos de Lei n.º 10.372/2018, n.º 10.373/2018, e n.º 882/2019 – GTPENAL, da Câmara dos Deputados, coordenado pela Deputada Federal Margarete Coelho, foi afirmada a especial gravidade da conduta de posse ou porte de arma de fogo de uso restrito ou proibido, de modo que se deve “coibir mais severamente os criminosos que adquirem ou “alugam” armamento pesado […], ampliando consideravelmente o mercado do tráfico de armas”.
Outrossim, ao alterar a redação do art. 16 da Lei n.º 10.826/2003, com a imposição de penas diferenciadas para o posse ou porte de arma de fogo de uso restrito e de uso proibido, a Lei n. 13.964/2019 atribuiu reprovação criminal diversa a depender da classificação do armamento.
6. Esta Corte Superior, até o momento, afirmava que os Legisladores atribuíram reprovação criminal equivalente às condutas descritas no caput do art. 16 da Lei n.º 10.826/2003 e ao porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração suprimida, equiparando a gravidade da ação e do resultado. Todavia, diante dos fundamentos ora apresentados, tal entendimento deve ser superado (overruling).
7. Corrobora a necessidade de superação a constatação de que, diante de texto legal obscuro – como é o parágrafo único do art. 1.º da Lei de Crimes Hediondos, na parte em que dispõe sobre a hediondez do crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo – e de temas com repercussões relevantes, na execução penal, cabe ao Julgador adotar postura redutora de danos, em consonância com o princípio da humanidade.
8. Ordem de habeas corpus concedida para afastar a natureza hedionda do crime de porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado. (STJ – HC 525.249-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020. Ver também STJ – HC n. 575.933).
SE LIGA!
POSSE OU PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO NÃO É CRIME HEDIONDO.
POSSE OU PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO PROIBIDO É CRIME HEDIONDO.
OLHA SÓ: A mudança legislativa em relação ao porte de arma de uso restrito é benigna, na medida em que retira o caráter hediondo, de forma que deve retroagir para beneficiar o réu.
DECRETO Nº 9.847:
Art. 2º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:
I – arma de fogo de uso permitido – as armas de fogo semiautomáticas ou de repetição que sejam:
a) de porte, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, não atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules;
b) portáteis de alma lisa; ou
c) portáteis de alma raiada, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, não atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules;
II – arma de fogo de uso restrito – as armas de fogo automáticas, semiautomáticas ou de repetição que sejam:
II – arma de fogo de uso restrito – as armas de fogo automáticas e as semiautomáticas ou de repetição que sejam: (Redação dada pelo Decreto nº 9.981, de 2019)
a) não portáteis;
b) de porte, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules; ou
c) portáteis de alma raiada, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules;
III – arma de fogo de uso proibido:
a) as armas de fogo classificadas de uso proibido em acordos e tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja signatária; ou
b) as armas de fogo dissimuladas, com aparência de objetos inofensivos;
A adoção pode ser revogada?
A adoção é medida excepcional e irrevogável – Art. 29, § 1 o da Lei n. 8069/90. Daí, é preciso fazer uma compressão sobre a razão da irrevogabilidade da adoção. Tal regra existe para proteção do adotado, de forma a evitar que crianças e adolescentes adotados sejam “devolvidos” por mero arrependimento, sem motivos justos ou dissabores dos pais adotivos. Por oportuno, registra-se que o TJ/SP já reconheceu a possibilidade de indenização por danos morais, em razão da mãe adotiva ter “devolvido” a criança à mãe biológica (AP n. 0006658-72.2010.8.26.0266, julgado em 08.04.2014).
Todavia, embora a regra seja a IRREVOGABILIDADE DA ADOÇÃO, esta não é absoluta. Decerto, a adoção será revogada quando verificar-se que a manutenção da adoção não apresenta reais vantagens para o adotado, tampouco é apta a satisfazer os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente.
Importante consignar que a adoção é uma “via de mão dupla”, uma escolha recíproca entre adotando e adotado. OLHA SÓ! Isso não quer dizer que o consentimento mutuo é indispensável, pois pode ser suprimido quando provada a existência de longo período de convivência, relações já consolidadas por lapso fático-temporal.
Logo, é possível a rescisão de sentença concessiva de adoção quando o adotado, à época da adoção, não a desejava ser adotado e de que, após atingir a maioridade, manifestou-se nesse sentido. STJ. 3ª Turma. REsp 1.892.782/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 06/04/2021 (Info 691).
É EXIGÍVEL A OUTORGA DO COMPANHEIRO PARA ALIENAÇÃO DE BENS IMÓVEIS E RENÚNCIA DA HERANÇA?
Em regra geral, a alienação de bens imóveis depende da autorização do cônjuge, salvo quando casados no regime da separação absoluta/total de bens (art. 1.647, I, do Código Civil/CC).
Vale dizer que o mesmo entendimento se estende a renúncia da herança. Isso porque, nos termos do artigo 80, II, do CC, o direito à sucessão aberta é considerado bem imóvel para efeitos legais. Decerto, é imprescindível a autorização do outro cônjuge para que o herdeiro renuncie à herança.
Compreendido que alienação de bens imóveis e renúncia de herança dependem de autorização do outro cônjuge (salvo no regime da separação total de bens), questiona-se: É necessária a outorga do companheiro para alienação de bens imóveis e renúncia da herança?
SE LIGA! O simples registro da união estável não torna necessário o consentimento – RESP n. 1.299.866/DF.
A necessidade de outorga uxória somente é necessária quando for de conhecimento notório ou do terceiro – RESP N. 1.424.275-MT.
DIREITO CIVIL. ALIENAÇÃO, SEM CONSENTIMENTO DO COMPANHEIRO, DE BEM IMÓVEL ADQUIRIDO NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL. A invalidação da alienação de imóvel comum, fundada na falta de consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida à união estável, mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência de união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou da demonstração de má-fé do adquirente. REsp 1.424.275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014, DJe 16/12/2014. (STJ – Informativo n. 554).
Como se vê, embora sejam arranjos familiares protegidos constitucionalmente no mesmo nível hierárquico, não se pode restringir a liberdade patrimonial privada sem previsão legal. A limitação de disposição dos bens imóveis só foi prevista ao cônjuge, de sorte que não se deve promover interpretação ampliativa de normas restritivas. Logo, o companheiro somente precisará da autorização do outro quando esta relação convivencial for de conhecimento notório ou do terceiro adquirente.
MEU PITACO: O companheiro que deseja autorizar a alienação dos bens imóveis deve averbar no registro de imóvel a existência da união estável. Assim, o adquirente não poderá alegar desconhecimento da união estável de quem alienou o bem imóvel.
A partir de quando deve ser paga a indenização do seguro de vida do ausente?
O processo de ausência e morte presumida é trifásico e escalonado:
1) DECLARAÇÃO DE AUSÊNCIA – tão logo alguém desapareça sem nomear curador – art. 22 do Código Civil;
2) SUCESSÃO PROVISÓRIA – 1 ano após a sentença que declarou ausência – art. 26 do Código Civil;
3) SUCESSÃO DEFINITIVA – 10 anos após a sentença que determinou a sucessão provisória – art. 37 do Código Civil .
Superada a compreensão do processo de declaração de ausência e morte presumida, percebe-se que a morte presumida só pode ser na abertura da sucessão definitiva, a qual é decretada (dez) 10 anos após o trânsito em julgado da sucessão provisória, que ocorre 1 (um) ano após a declaração de ausência (procedimento trifásico).
Logo, alienação de bens do falecido, dissolução do casamento, tributação de causa mortis e indenização por seguro de vida só ocorre 10 anos após a sucessão provisória (na sentença de declaração de morte presumida e abertura da sucessão definitiva). Em suma, a declaração de ausência plena só ocorre na sucessão definitiva (no mínimo 11 (onze) anos após), ocasião em que surge o dever de indenização ao beneficiário decorrente morte do titular do seguro de vida.
OLHA SÓ 1! Embora a regra geral diga que a alienação de bens só possa ocorrer na sucessão definitiva (morte presumida), excepcionalmente é possível a alienação de bens de bens durante a sucessão provisória, para evitar a ruína, por exemplo. Todavia, neste momento é indispensável autorização judicial precedida dos interessados e do do Ministério Público – art. 29 a 31, 1750 e 1.774 do Código Civil.
OLHA SÓ 2! O cônjuge do ausente somente é declarado viúvo na sentença de abertura da sucessão definitiva (isso mesmo, no mínimo, 11 anos após o desaparecimento). O que fazer para casar antes desse prazo? Ação de Divórcio, com pedido de citação via edital, uma vez que o divórcio é direito potestativo.
A competência para declaração de ausência é da justiça estadual (vara de família ou sucessões), ainda que a finalidade seja previdenciária, até mesmo do INSS – CC n. 13229/RJ e CC n. 16067/RJ
SE LIGA! A indenização do seguro de vida não obedece a ordem de vocação hereditária prevista no artigo 1829 do Código Civil. Assim, a indenização pertence ao beneficiário previsto no contrato do seguro (apólice). Caso o beneficiário já tenha morrido no momento do falecimento do titular do seguro de vida (caducidade) ou não haja indicação de beneficiários, o valor do seguro será dividido entre metade para cônjuge/companheiro e a outra metade para os herdeiros – STJ: Resp n. 1.767.972/RJ, julgado em 24.11.2020. DICA TRIBUTÁRIA! A indenização decorrente do seguro de vida é direito próprio. Logo, não há transmissão patrimonial, nem incidência tributária, diferente do que há na sucessão de corrente da morte (inclusive nos casos de morte presumida) em que há transmissão patrimonial e incidência tributária (STF – Súmula n. 331).
A abertura de inventário implica em aceitação da herança?
A herança é um direito fundamental (Art. 5º, XXX, da CRFB). Sendo direito, cabe ao herdeiro decidir se aceita ou não a herança.
Embora a herança seja transmitida no momento da abertura da sucessão (morte do autor da herança), é indispensável que o herdeiro tenha a oportunidade de aceitar ou renunciar a herança (“INVITO NON DATUR BENEFICIUM” = “A quem não quer, não se dar o benefício.”
A aceitação da herança é o ato jurídico unilateral pelo qual o herdeiro (legítimo ou testamentário) manifesta livremente, confirma a sua vontade de receber a herança (Art. 1804 do CC).
A vantagem da aceitação para confirmar a aceitação da herança protege o patrimônio do herdeiro, para que este não seja obrigado a pagar dívidas. Assim, o credor do falecido deverá buscar o inventário, o espólio para receber seus créditos, conforme dispõe o art. 1792 do Código Civil (O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados.
A ACEITAÇÃO DA HERANÇA pode ser expressa, tácita ou presumida:
A aceitação será EXPRESSA quando manifesta por um ato escrito do interessado, por instrumento público ou particular – Art. 1805, 1ª parte, do Còdigo Civil.
Por sua vez, a aceitação é PRESUMIDA diante do silêncio do interessado, após a citação em uma actio interrogatoria (ou mera interpelação judicial) – após 30 dias de ser notificado se aceita ou não a herança (geralmente quem notifica é o credor ou outro herdeiro) – art. 1807 do CC.
Por fim, a aceitação é TÁCITA quando o herdeiro pratica algum comportamento a subentender a aceitação – “atos próprios de herdeiro”. A doutrina já cita como aceitação tácita, a cessão de direitos hereditários feita pelo herdeiro.
SE LIGA! Nem todo ato do herdeiro relacionado ao falecido ou ao patrimônio deixado caracteriza ato próprio de herdeiro (aceitação tácita). O artigo 1805,§1º e §2º, do Código Civil: Não exprimem aceitação de herança os atos oficiosos, como o funeral do finado, os meramente conservatórios, ou os de administração e guarda provisória; Não importa igualmente aceitação a cessão gratuita, pura e simples, da herança, aos demais co-herdeiros.
A abertura de inventário implica em aceitação tácita da herança?
Questão curiosa é a abertura do inventário feita pelo herdeiro. A doutrina clássica (Maria Helena Dniz, Silvio Rodrigues, Washinton Monteiro de Barros, entre outros) afirmavam que a contratação de advogado, a abertura do inventário não seria um ato próprio de herdeiro.
Contudo, o Superior Tribunal de Justiça entende que a abertura de inventário pelo advogado com poderes outorgados pelo herdeiro já implica em aceitação tácita da herança (portanto, impossível renúncia após o início do inventário pelo herdeiro que procedeu a abertura).
Confira o julgado: STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 1.622.331 – SP – DIREITO CIVIL. SUCESSÕES. HERANÇA. ACEITAÇÃO TÁCITA. ART. 1.804 DO CÓDIGO CIVIL. ABERTURA DE INVENTÁRIO. ARROLAMENTO DE BENS. RENÚNCIA POSTERIOR. IMPOSSIBILIDADE. ARTS. 1.809 E 1.812 DO CÓDIGO CIVIL. ATO IRRETRATÁVEL E IRREVOGÁVEL. 1. A aceitação da herança, expressa ou tácita, torna definitiva a qualidade de herdeiro, constituindo ato irrevogável e irretratável. 2. Não há falar em renúncia à herança pelos herdeiros quando o falecido, titular do direito, a aceita em vida, especialmente quando se tratar de ato praticado depois da morte do autor da herança. 3. O pedido de abertura de inventário e o arrolamento de bens, com a regularização processual por meio de nomeação de advogado, implicam a aceitação tácita da herança. 08/11/2016 (Data do Julgamento)
Em alguma situação, o herdeiro é obrigado a aceitar a herança?
A herança é um direito fundamental (Art. 5º, XXX, da CRFB). Sendo direito, cabe ao herdeiro decidir se aceita ou não a herança.
Embora a herança seja transmitida no momento da abertura da sucessão (morte do autor da herança), é indispensável que o herdeiro tenha a oportunidade de aceitar ou renunciar a herança (“INVITO NON DATUR BENEFICIUM” = A quem não quer, não se dar o benefício.”
A aceitação da herança é o ato jurídico unilateral pelo qual o herdeiro (legítimo ou testamentário) manifesta livremente, confirma a sua vontade de receber a herança (Art. 1804 do CC).
A vantagem da aceitação para confirmar a aceitação da herança protege o patrimônio do herdeiro, para que este não seja obrigado a pagar dívidas. Assim, o credor do falecido deverá buscar o inventário, o espólio para receber seus créditos, conforme dispõe o art. 1792 do Código Civil (O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados.
Um detalhe tributário prático: Nos termos da Súmula 590 do STF, “calcula-se o imposto de transmissão causa mortis sobre o saldo credor da promessa de compra e venda de imóvel, no momento da abertura da sucessão do promitente vendedor”. Em outras palavras, o valor da causa no inventário e dos tributos não terá como referência todo o patrimônio deixado pelo falecido, mas apenas o valor resultante do saldo do patrimônio deixado subtraídas as dívidas.
A ACEITAÇÃO DA HERANÇA pode ser expressa, tácita ou presumida:
EXPRESSA – Ato escrito do interessado, por instrumento público ou particular – Art. 1805, 1ª parte
TÁCITA – Comportamento do interessado, fazendo subentender a aceitação – “benefício do inventário” (mais comum) – conduta, atos próprios de herdeiro. (contratação de advogado para promover abertura de inventário, por exemplo; cessão de direitos hereditários).
PRESUMIDA – Silêncio do interessado, após a citação em uma actio interrogatoria (ou mera interpelação judicial) – após 30 dias de ser notificado se aceita ou não a herança (geralmente quem notifica é o credor ou outro herdeiro) – art. 1807 do CC.
Se o herdeiro morrer antes de aceitar? O direito passa aos sucessores por direito da transmissão – art. 1809 do CC.
Em alguma situação, o herdeiro é obrigado a aceitar a herança? Já está compreendido entre nós que a herança é um direito, portanto pode ser aceita ou renunciada.
Todavia, em um caso específico, a aceitação da herança será obrigatória.
Isso acontece quando um ascendente doa determinado bem para um descendente. O pai pode doar um bem para apenas um dos filhos? SIM, mas tal doação importa em adiantamento da herança (art. 544 do CC).
Como consequência, o descendente que concorre à sucessão do ascendente comum é obrigado, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida recebeu (colação), sob pena de sonegação (art. 2002 do Código Civil).
A colação sempre será obrigatória? NÃO. Quando a doação é da parte disponível (não supera metade dos bens do doador no momento da liberalidade – art. 1789 do CC) e houver dispensa de colação (art. 2002 do CC), não haverá obrigatoriedade de colação.
Entretanto, é possível que a doação feita pelo falecido supere a parte disponível. Daí, o herdeiro pode querer renunciar a herança, para ficar livre do dever de colacionar, pois não seria herdeiro, sujeito do inventário.
Diante disso, os demais herdeiros sofreriam prejuízo patrimonial, por ausência da colação do bem recebido.
Por tal razão, o Superior Tribunal de Justiça compreende que, malgrado a herança seja um direito fundamental (art. 5º, XXX, da CRFB), nos casos em que o herdeiro tenha recebido bens do falecido sem a dispensa do dever de colação, o herdeiro será obrigado a aceitar a herança e colacionar os bens doados pelo falecido. Confira:
“(…) Direito da autora de ver conferido o valor das doações recebidas pelos seus irmãos que permanece hígido, ainda que se considere prescrita a pretensão de anulação da doação impugnada, uma vez que a colação constitui dever legal imposto ao descendente donatário que se protrai para o momento da abertura da sucessão, nos termos do art. 1.786 e seguintes do Código Civil.” (STJ, Ac. 3ª T., REsp 1605483 / MG, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 23.2.21).
SE LIGA! O donatário que não foi dispensado do dever de colação não pode renunciar a herança, pois se assim o fosse, o bem que foi dado não constaria do inventário e o donatário não cumpriria o dever de colação. Malgrado seja um direito fundamental, o herdeiro é obrigado a aceitar a herança quando receber bens doados pelo falecido, pois neste caso é obrigado a colacionar no inventário. Logo, a aceitação da herança será obrigatória.
O Senador Jorge Kajuru violou a Constituição e praticou crime ao divulgar gravação telefônica com o Presidente Bolsonaro?
Em entrevista ao programa Direto ao Ponto (Rádio Jovem Pan), o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro (bacharel em Direito) afirmou que o Senador Jorge Kajuru violou o artigo 5º da Constituição e teria praticado crime ao divulgar a conversa ocorrida com o Presidente Jair Bolsonaro, pois o direito à privacidade proíbe divulgação de conversas telefônicas sem autorização judicial.
O deputado Eduardo Bolsonaro tem razão?
Para começo de conversa, precisamos lembrar o que consta no artigo 5º, XII, da CRFB: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”; (Grifei).
Percebe-se que a Constituição estabelece a inviolabilidade das comunicações. Todavia, como os direitos fundamentais não são absolutos, é possível relativizar tal inviolabilidade.
Porém, SE LIGA! Quanto às comunicações telefônicas, estas podem ser acessadas, mas dependem de autorização judicial (clausula de reserva de jurisdição).
Um parêntese: Clausula de Reserva de Jurisdição equivale a dizer que são situações em que o Judiciário não dá apenas a “ultima palavra”, mas também, a “primeira palavra”. È o que acontece na busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), na interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e na decretação da prisão de qualquer pessoa, salvo prisão em flagrante (CF, art. 5º, LXI).
Daí, ao que parece uma conversa telefônica depende de autorização judicial para acesso e divulgação.
Ocorre que é indispensável compreender o que é a interceptação telefônica. Tal instituto se dá quando todos os envolvidos na conversa telefônica ignoram que um terceiro esteja acompanhando o diálogo. Apenas neste caso, há necessidade de autorização judicial.
E o que ocorre nos outros casos quando alguém envolvido na conversa tem conhecimento da gravação? Neste caso, não há interceptação, pois a gravação é feita por um dos envolvidos (direta ou indiretamente). Nestas circunstâncias, via de regra, não há que se falar em violação à proteção da privacidade, pois quem está gravando sem o conhecimento do outro ou permitindo a gravação é um dos interlocutores que escolheu dispor da sua privacidade. Logo, malgrado o desvio ético, não há que se falar em violação à Constituição nas gravações clandestinas.
Para melhor ilustrar, segue o quadro abaixo:
| GRAVAÇÃO PESSOAL: | Alguém realiza a gravação com um gravador no bolso ou celular, mas sem o conhecimento do outro. NÃO PRECISA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. |
| GRAVAÇÃO CLANDESTINA TELEFÔNICA: | A captação se dá em relação à conversa telefônica ou via Skype, WhatsApp etc. NÃO PRECISA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. |
| GRAVAÇÃO CLANDESTINA AMBIENTAL: | A conversa é realizada em um ambiente que não o telefone (espaço aberto, repartição pública), sendo captada e gravada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro. NÃO PRECISA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. |
| INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA: | A captação e a gravação da conversa são feitas sem que os interlocutores, nenhum deles, tenha conhecimento. Neste caso, A CONSTITUIÇÃO EXIGE ORDEM JUDICIAL, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução (art. 5º, XII, da CRFB). |
Cumpre esclarecer que as gravações clandestinas (feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro) já foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal:
“a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, quando ausente causa legal de sigilo ou de reserva da conversação não é considerada prova ilícita”. (- AI 578.858-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 04.08.2009, 2.ª T., DJE de 28.08.2009).
“A gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, quando ausente causa legal de sigilo ou de reserva da conversação não é considerada prova ilícita” (RE 630.944 AgR/ BA, rel. Min. Ayres Britto, 2ª Turma, j. 25-10-2011).
Aliás, em outra oportunidade, o STF admitiu como prova a conversa gravada por um dos interlocutores, ainda que com a ajuda de um repórter (cf. RE 453.562-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 23.09.2008, 2.ª T., DJE de 28.11.2008).
Então, o que seria crime?
Nos termos do artigo 8º da Lei n. 9296/96, o crime ocorre quando há interceptação telefônica ou captação ambiental (sem conhecimento dos envolvidos) sem autorização judicial. Por oportuno, esclareça-se que o artigo 8º-A, parágrafo primeiro dispõe que “ Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores”
Como se vê, não há que falar em violação à Constituição (art. 5º, XII, da CRFB), tampouco crime quando ocorre a gravação por um dos interlocutores, pois não se encaixa no conceito de interceptação telefônica (realizada por terceiro sem conhecimento dos envolvidos). Também não é crime, pois não há qualquer tipo penal que considere infração penal tal conduta. Apenas a interceptação telefônica sem autorização judicial é crime (art. 10 da Lei n. 9.296/96).b
NOVIDADE LEGISLATIVA:
Importante lembrar que o Pacote Anticrime (Lei n. 13964/19) incluiu o artigo 8-A na Lei n. 9.296/96 (Lei das Interceptações telefônicas) para também permitir a captação ambiental de sinais eletrogmanéticos (energia), ópticos (imagens) e acústicos (sons).
Art. 8º-A. Para investigação ou instrução criminal, poderá ser autorizada pelo juiz, a requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, quando:
I – a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis e igualmente eficazes; e
II – houver elementos probatórios razoáveis de autoria e participação em infrações criminais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou em infrações penais conexas.
§ 1º O requerimento deverá descrever circunstanciadamente o local e a forma de instalação do dispositivo de captação ambiental.
§ 2º (VETADO).
§ 3º A captação ambiental não poderá exceder o prazo de 15 (quinze) dias, renovável por decisão judicial por iguais períodos, se comprovada a indispensabilidade do meio de prova e quando presente atividade criminal permanente, habitual ou continuada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 4º (VETADO).
§ 5º Aplicam-se subsidiariamente à captação ambiental as regras previstas na legislação específica para a interceptação telefônica e telemática.
CRIME DE PERSEGUIÇÃO (“stalking”: O novo art. 147-A do Código Penal
Para começo de conversa, a inovação legislativa ganhou o nome nas mídias sociais do crime de stalking.
Daí, questiona-se: O que é Stalking?
Conforme a própria justificativa da proposta legislativa, a expressão “stalking” é uma importação da língua inglesa e refere-se à perseguição obsessiva e insidiosa.
No livro “Stalking e Cyberstalking: Obsessão, Internet, Amedrontamento” a autora Ana Lara Camargo de Castro aponta stalking como o comportamento doloso e habitual, consistente em mais de um ato de atenção indesejada, importunação ou perseguição, capaz de acarretar à vítima violação da intimidade, da privacidade ou temor por sua própria segurança”.
Este comportamento já era relevante para o direito penal? SIM. Tal comportamento consistia na contravenção penal de perturbação à tranquilidade (art. 65 da Lei de Contravenções Penais). Acontece que a pena da infração penal era de 15 dias a 2 meses e multa. Como se vê, o legislador tratava de forma deficiente a proteção a ser dada ao bem jurídico em discussão.
Superadas as linhas iniciais sobre a ideia de “stalking”, passa-se ao exame do crime previsto no artigo 147-A do Código Penal:
Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:
I – contra criança, adolescente ou idoso;
II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;
III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.
§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.
§ 3º Somente se procede mediante representação.
O delito de “perseguição” – (art. 147-A do Código Penal), pode ser assim analisado:
BEM JURÍDICO PROTEGIDO: Tutela a liberdade do indivíduo, caracterizando-se, a priori, como delito de perigo, vez que se revela como um crime que se não repreendido pode levar para diversos outros delitos.
Não é a mera perseguição que caracterizará o crime, mas aquela capaz de atentar contra a liberdade individual, com o objetivo de ameaçar alguém da prática de um mal injusto e grave tem o condão de perturbar sua paz, de forma a reduzir a faculdade de determinar-se de forma livre.
CONDUTA: É a perseguição persistente, na qual o sujeito ativo pratica, reiteradamente, por qualquer meio, comportamentos ameaçadores sob o aspecto físico ou psicológico, contra alguém, ou ainda condutas invasivas e perturbadoras à esfera da liberdade ou privacidade da vítima. Um alerta deve ser dito no tocante ao “qualquer meio”, pois isso deixa claro que até mensagens virtuais, gestos, palavras e sinais podem ser utilizados com o fim de amedrontar, atentar contra s liberdade de locomoção ou violar a privacidade e intimidade.
SUJEITO ATIVO: Qualquer pessoa. O tipo penal não exige qualquer qualidade especial do agente.
SUJEITO PASSIVO: Qualquer pessoa com discernimento (que possua capacidade de compreensão e de decidir sobre seus próprios atos).
MEIOS DE EXECUÇAÕ:
Perseguir, no sentido do tipo penal, significa importunar, causar constrangimento. O tipo penal contempla três formas de caracterização do delito:
a) ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica: Nesta circunstância, há um tipo especial com relação ao crime de ameaça, previsto no art. 147 do Código Penal, (ameaça + perseguição = reiteração do comportamento) como meio de causar temor físico ou psicológico, sendo, portanto, delito complexo. Muito corriqueiro através de mensagens e redes sociais.
b) restringindo-lhe a liberdade de locomoção: a restrição da locomoção, prevista no tipo penal, não se confunde com a efetiva privação da liberdade da vítima, uma vez que tal comportamento caracteriza o crime de sequestro ou cárcere privado (art. 148 do CP). Somente a perseguição apta a causar restrições à capacidade de locomoção caracteriza o tipo penal.
c) ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade: Talvez essa seja a conduta de perseguição mais praticada nos dais atuais (stalking). Surge a situação daquele que persegue reiteradamente a vítima em seus vários momentos de privacidade (perseguindo em eventos públicos que essa comparece, abordagens perturbadoras. Uma crítica à ser feita está relacionada a expressão “qualquer forma”, pois deixa uma lacuna muito aberta, o que afronta ao princípio da taxatividade.
CRIME HABITUAL: A elementar “reiteradamente” denota ser crime habitual, pois exige a reiteração dos atos por parte do sujeito ativo. Assim, não se consuma o delito com a mera prática de um ato, havendo a necessidade de habitualidade no comportamento a ponto de criar o temor ou perturbação da vítima.
ELEMENTO SUBJETIVO: Crime doloso (dolo direto e eventual) Não há um dolo específico. Não admite a modalidade culposa.
CONSUMAÇÃO E TENTATIVA. O crime se consuma com a reiteração da conduta de perseguir capaz de (i) causar ameaça à integridade física ou psicológica, (ii) restrição à capacidade de locomoção ou, (iii) de qualquer forma, invadir ou perturbar sua esfera de liberdade ou privacidade da vítima.
Tendo em vista ser um crime de perigo, o resultado estará configurado com a efetiva caracterização da perseguição reiterada capaz de causar ameaça à integridade física ou psicológica, restrição à capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadir ou perturbar sua esfera de liberdade ou privacidade.
A tentativa não é possível, pois o tipo penal exige a habitualidade comportamental e consequente reiteração de atos
CAUSAS DE AUMENTO:
O §1º do art. 147-A prevê:
§1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:
I – contra criança, adolescente ou idoso;
II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;
III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.
Como se vê, a presença de qualquer causa de aumento levará o crime para pena máxima em abstrato de 3 (três) anos, o que afasta a competência do Juizado Especial Criminal, pois deixa de ser infração de menor potencial ofensivo.
Se ocorrer lesões corporais como decorrência do comportamento do agente, o legislador previu o concurso de crimes (concurso material – art. 69 do CP) para fins de aplicação da pena – Art. 147-A, §2º, do CP.
AÇÃO PENAL: Ação Penal Pública condicionada à representação (Art. 147-A, §3º, do CP).
INSTITUTO DESPENALIZADORES – A pena cominada ao delito permite a aplicação de ambos os benefícios da Lei 9.099/95 (transação penal e suspensão condicional do processo).
E o Acordo de Não-Persecução Penal? Via de regra, cabível a transação penal não há que se falar em acordo de não persecução penal (ANPP) – Art. 28-A, § 2º, inc. I, do CPP. No entanto, incidente a causa de aumento do § 1º e o crime não seja praticado no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, nem consista em perseguição com ameaça direta à integridade da vítima, o ANPP será admissível.
REVOGAÇÃO DO ART. 65 da LCP (Pertubação à tranquilidade) – É possível falar em “abolitio criminis”? O art. 65 da LCP não exigia habitualidade, o que é requisito no novo crime de perseguição. Decerto, nas situações que a infração foi configurada por uma conduta instantânea, ou seja, apenas um ato de molestar alguém ou de perturbar sua tranquilidade deverá ser reconhecida a extinção da punibilidade (art. 107, inc. III, do CP) .
Perfis de stalkers apontados na doutrina (Ana Lara Camargo de Castro – Livro : “Stalking e Cyberstalking: Obsessão, Internet, Amedrontamento”):
REJEITADO – vem do contexto de ruptura relacional, usualmente erótico-afetiva, mas também familiar ou de amizade. As motivações desse tipo são reconciliação ou retaliação, que se podem apresentar de forma ambivalente, alternando desejo de reatar o relacionamento e ira. É o tipo que se utiliza da maior variedade de práticas persecutórias e emprega todos os métodos de intrusão e assédio. Vale-se de ameaças em mais de 70% dos casos e escalona para agressão em mais de 50% deles. Em classificações de outros autores, podem ser denominados como obsessivos simples, escanteados ou exparceiros. Mas, de toda forma, são os tipos mais comuns, que representam a maioria absoluta dos casos de stalking identificados e nos quais, em regra, incluem-se os stalkers em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.
RANCOROSO – Surge do sentimento de sentir-se maltratado, injustiçado ou humilhado. E a vítima pode ser completa estranha ou mera conhecida a quem ele atribui o distrato. A motivação inicial costuma ser vingança, posteriormente mantida pela sensação de controle que obtém em incutir medo na vítima. Pode também demonstrar ressentimento em relação à empresa, à autoridade ou ao sistema – forças poderosas e opressoras contra as quais acredita estar reagindo. Em classificações diversas, podem ser denominados como stalkers políticos ou de pauta específica.
CARENTE DE INTIMIDADE – surge de contexto de solidão e falta de autoconfiança. A vítima costuma ser estranha ou mera conhecida com quem o stalker deseja formar vínculo. É comum que sofra de transtorno delirante de erotomania e acredite estar sendo correspondido. Nessa categoria, encontramse aqueles que, em classificações propostas por outros autores, podem ser denominados como de fixação delusória, assediadores de celebridades ou erotomaníacos.
CONQUISTADOR INCOMPETNENTE – É aquele que aparece em contexto de solidão ou lascívia, com foco em vítima estranha ou mera conhecida. Diferencia-se daquele carente de intimidade porque sua motivação não é o estabelecimento de vínculo amoroso e, sim, encontro passageiro ou relação sexual. Costuma assediar por curto período de tempo e quando o comportamento é mantido isso se dá por cegueira ou indiferença ao incômodo causado.
PREDATÓRIO – Surge no contexto de transtorno de preferência sexual (perversão). A motivação costuma ser a gratificação sexual, muitas vezes pelo simples voyeurismo, mas geralmente escalona para estupro, servindo o stalking como instrumento de preparação ou prelúdio para o ataque. O stalker dessa natureza tem prazer na observação sub-reptícia, diferentemente do rancoroso que deseja impor desconforto e medo, o predador muitas vezes não tem qualquer interesse em perturbar a vítima ou alertá-la. Em outras classificações aparece como sádico.”
DOSIMETRIA DA PENA: O que fazer com as causas de aumento sobressalentes?
O Código Penal adotou o modelo trifásico para aplicação da pena privativa de liberdade (Nelson Hungria). Isso é verificado a partir do artigo 68. Confira:
Art. 68 – A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento
1ª fase – Pena-base – Circunstâncias Judiciais.
2ª fase – Aplicação das atenuantes e agravantes
3ª fase – Aplicação das causas de diminuição e aumento.
Na primeira fase, a pena-base é analisada a partir das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
Como se vê, são 8 (oito) circuntâncias judiciais: 1) Culpabilidade; 2) Antecedentes; 3) Conduta Social; 4) Personalidade; 5 ) Motivos do crime; 6) Circunstâncias do crime; 7) Consequências do crime; 8) Comportamento da vítima.
Na segunda fase, a pena intermediária leva em conta as atenuantes e Agravantes, as quais estão previstas entre os artigos 61 a 67 do Código Penal.
Importa notar que assim como as circunstancias judiciais, as atenuantes e agravantes não integram o crime, mas possuem relação capaz de interferir na pena. As atenuantes aplicam-se a todos os crimes, enquanto que as agravantes, salvo a reincidência, aplicam-se apenas nos crimes dolosos.
Malgrado divergência doutrinária, registra-se que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento sumulado que “a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal” (Enunciado n. 231).
Quanto vale uma atenuante ou agravante? Diante do silêncio legislativo, a doutrina orienta que a proporcionalidade deve ser observada, tendo como valores isonômicos entre uma atenuante e uma agravante.
Por sua vez, a jurisprudência indica o valor de 1/6 (um sexto) como valor a ser considerado para cada atenuante ou agravante, sem prejuízo de eventual exceção. Nesse sentido: STJ, HC 594.584, Rel. Min. Joel Ilan Paciornick, 5ª Turma, j. 22.09.2020: A pena foi aumentada em 1/5 em razão da reincidência específica do paciente. Acontece que o atual entendimento desta Quinta Turma é no sentido de que essa especificidade, por si só, não justifica aumento superior a 1/6.
CONCURSO DE CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES E ATENUANTES – No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência.
Assim, esta é a ordem de preponderância nas agravantes e atenuantes: a) Motivos; b) Personalidade (confissão está aqui) e c) Reincidência
Observações importantes
- A menoridade de 21 anos prepondera contra todas.
- A confissão espontânea se compensa pela reincidência
- A multirreincidência prepondera sobre a confissão espontânea.
A jurisprudência firmou entendimento pela possibilidade da compensação entre reincidência e confissão:
DIREITO PENAL. COMPENSAÇÃO ENTRE REINCIDÊNCIA E CONFISSÃO ESPONTÂNEA. AgRg no REsp 1.424.247-DF, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 3/2/2015, DJe 13/2/2015.
6ª Turma – Tratando-se de réu multirreincidente, não é possível promover a compensação entre a atenuante da confissão espontânea e a agravante da reincidência. Apesar de se reconhecer que a 3ª Seção do STJfirmou o entendimento de que a atenuante da confissão espontânea pode ser compensada com a agravante da reincidência (EREsp 1.154.752-RS, DJe 4/9/2012), o fato é que se essa compensação fosse admitida no caso de réu multirreincidente haveria violação, sobretudo, ao princípio da proporcionalidade e individualização da pena, já que a multirreincidência exige maior reprimenda do que a reincidência advinda de um único fato.
Na terceira fase da dosimetria da pena, incidem as causas de diminuição e causas de aumento.
As causas de aumento e diminuição estão presentes no Código Penal e na legislação especial, incidem sobre a pena intermediária e podem levar a pena para aquém do mínimo ou além do máximo
Ocorre que todas as causas de aumento (e de diminuição também) previstas na Parte Geral do Código Penal devem incidir na dosimetria da pena.
Todavia, no concurso de causas de aumento ou de diminuição previstas na parte especial (ou na legislação especial), pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua. (art. 68, parágrafo único, do CP).
Diante disso, surge uma questão: O que fazer com as causas de aumento sobressalentes (sobejantes, aquelas que não foram aplicadas no caso concreto)?
Segundo o Superior Tribunal de Justiça, as causas de aumento que “sobraram” na dosimetria da pena são utilizadas na pena intermediária (segunda fase) ou na pena-base (primeira fase), em respeito à relação da individualização da pena e o caso concreto, não podendo ser desprezadas, pois isso violaria a proporcionalidade (como se o Direito Penal ficasse “cego” na hora de aplicar a pena para um circunstância concreta que ocorreu).
Cumpre notar que o mesmo raciocínio deve ser utilizado para causas de aumento de valor fixo (art. 177 do CP), como causas de aumento com valor variável (ex.: 1/3 até 1/2 – art. 157, §2º, do CP).
Assim, caso em um crime exista mais de uma causa de aumento presente na parte especial, uma delas deve ser utilizada para gerar aumento na terceira fase e as outras devem incidir na primeira ou segunda fase da dosimetria da pena, conforme o caso concreto.
Confira a ementa do Habeas Corpus n. 463434:
(…) A questão jurídica trazida nos presentes autos e submetida ao crivo da Terceira Seção diz respeito, em síntese, à valoração de majorantes sobejantes na primeira ou na segunda fase da dosimetria da pena, a depender se a causa de aumento traz patamar fixo ou variável. Contudo, não é possível dar tratamento diferenciado à causa de aumento que traz patamar fixo e à que traz patamar variável, porquanto, além de não se verificar utilidade na referida distinção, o mesmo instituto jurídico teria tratamento distinto a depender de critério que não integra sua natureza jurídica.
3. Quanto à possibilidade propriamente dita de deslocar a majorante sobejante para outra fase da dosimetria, considero que se trata de providência que, além de não contrariar o sistema trifásico, é a que melhor se coaduna com o princípio da individualização da pena. De fato, as causas de aumento (3ª fase), assim como algumas das agravantes, são, em regra, circunstâncias do crime (1ª fase) valoradas de forma mais gravosa pelo legislador. Assim, não sendo valoradas na terceira fase, nada impede sua valoração de forma residual na primeira ou na segunda fases. 4. A desconsideração das majorantes sobressalentes na dosimetria acabaria por subverter a própria individualização da pena realizada pelo legislador, uma vez que as circunstâncias consideradas mais gravosas, a ponto de serem tratadas como causas de aumento, acabariam sendo desprezadas. Lado outro, se não tivessem sido previstas como majorantes, poderiam ser integralmente valoradas na primeira e na segunda fases da dosimetria.
Nagibão e o art. 1790 do Código Civil – A História contada por Zeno Veloso que divulgou Manacapuru em todo o Brasil
Segue abaixo, a famosa História de Nagibão e o amor por Terezinha que se descobriram em Manacapuru/AM contada inúmeras vezes pelo querido Mestre Zeno Veloso:
Desde que foi aprovado o Código Civil, em 2002 – e o mesmo ainda estava na vacatio legis -, em artigos, palestras, pareceres, livros, manifestações orais e escritas, combati o art. 1.790 do aludido Código, que regulava a sucessão entre companheiros, e surgiu estranho, equivocado, desde o local em que foi inserido. Mostrei que o dispositivo era retrógrado, discriminador, reacionário, passadista, “dando um pulo para trás”, voltava a um tempo já ultrapassado em que imperavam a hipocrisia e a intolerância. Garanti que se tratava de uma norma que violava princípios fundamentais da Carta de 1988, apresentando-se perdidamente inconstitucional. Mas, apesar dos males indescritíveis que essa lei causava no meio social, das angústias e injustiças que proporcionou, continuava vigorando, e os anos se sucedendo…
Fiz uma verdadeira pregação contra o art. 1.790, em muitas cidades, em todas as capitais – exceto Rio Branco, no glorioso Acre, onde nunca estive. E por toda parte, ao lado dos argumentos de ordem técnica, de índole civil e constitucional, contava a história de Nagibão e de sua fiel companheira de muitos anos, a doce Terezinha, que ele havia conhecido e começado a amar na simpática cidade de Manacapuru, no Amazonas. Sem exagero, para combater o terrível art. 1.790 do Código Civil, provando que era insensato, desarrazoado, desproporcional, injustíssimo, devo ter falado da vida e da morte de Nagibão umas cem vezes, de Norte a Sul do País, “do Monte Caburaí (RR), ao Arroio Chuí (RS)”. Quem sabe – e pela última vez -, atendendo a muitos pedidos, e pelo site de nosso IBDFAM, vou dizer como tudo aconteceu. A história é verídica, com alguma coisa inventada, pois “quem conta um conto aumenta um ponto”. Aproveito para fazer uma homenagem à memória de
Nagibão, cujo exemplo ajudou a derrubar um artigo do Código Civil que era uma poderosa muralha de iniquidade, preconceito e parcialidade.
Nagib nasceu em Zahle, zona montanhosa do Líbano e ali começou seus estudos. Tinha dois amigos, muito próximos: Salim, que era seu primo, e Mustafá. Eram meninos pobres, nem sequer conheciam Beirute, na margem do Mediterrâneo, que ficava tão próxima, no pé da montanha. Desde logo perceberam que, sem estudo, trabalho e muita sorte não iriam conseguir vencer a pobreza e ascender social e economicamente.
Com 16 anos, Nagib era o melhor aluno da turma em História e Geografia. Apaixonou-se pelo Brasil e, especialmente, pela Amazônia. Tinha um parente afastado de sua mãe estabelecido em Manaus, e resolveu se transferir para essa cidade. Com o apoio de seus pais e a boa vontade desse parente, tirou o passaporte, obteve o visto e partiu para o sonho. Veio de navio, na terceira classe. Salim não quis acompanhá-lo, mas seu melhor amigo, Mustafá, gostou da aventura amazônica, e veio junto.
Em Manaus, e já tendo aprendido algumas palavras de português, Nagib começou a trabalhar como balconista numa mercearia. E ali permaneceu durante quatro anos. Os fregueses o chamavam de Nagibão, pois era alto, gordo e trazia, sempre, um sorriso no rosto. Logo que completou vinte anos, e já com alguma economia, o rapaz resolveu assumir seu próprio negócio. Comprou a prazo um pequeno barco motorizado, e se dedicou ao ramo dos regatões. Percorria rios, lagos, furos, igarapés, levando os mais diversos produtos – leite em pó, cerveja, açúcar, charque, manteiga, brinquedos etc -, que vendia no interior ou trocava com os ribeirinhos por mercadorias regionais, como frutas, farinha de mandioca, aves, couro de animais e essências da floresta. Nagib ficou conhecido numa extensa região. Quando aportava nos trapiches das pequenas localidades, ouvia a algazarra simpática do molecório – a quem doava balas e bolas de futebol -: “o Nagibão chegou, o Nagibão chegou”…
Assim o tempo foi correndo, e ele enriquecendo. Já tinha comprado três casas em Manaus e o barco em que fazia o regatão era maior e mais equipado. Foi quando conheceu Lívia, que tinha vindo de Parintins para estudar na capital. Entre namoro a noivado decorreram dois anos, e se casaram. O casal não teve filhos, o que, provavelmente, estreitou os laços do matrimônio. Eram muito felizes. Mas a esposa morreu, prematuramente. Nagibão, desconsolado, chorando compulsivamente, na beira do túmulo, fez o juramento: “Livia, meu amor, jamais me casarei de novo”.
Viúvo, com uma boa renda dos imóveis que havia adquirido – nessa altura já era dono de mais de uma dezena deles na progressista Zona Franca de Manaus -, Nagibão diminuiu suas atividades, mas, de vez em quando, até para reencontrar antigos clientes, matar saudades, partia em seu barco para localidades em que tantas e tantas vezes havia chegado. Uma vez, foi à linda cidade de Manacapuru, na margem esquerda do rio Solimões, onde tinha muitos amigos. No domingo, dirigiu-se ao lago do Miriti, onde fica o balneário local, e viu um grupo de moças que se banhavam. Uma delas era morena-jambo, olhos esverdeados, levemente puxados, cabelos negros que cobriam as costas largas, enfim, uma cabocla típica da terra, coisa mais linda o nosso libanês jamais tinha visto antes. Desde que deitou seus olhos sobre aquela exuberante figura de mulher, Nagibão ficou apaixonado. Aproximou-se da moça, a simpatia foi correspondida, começaram a namorar. Chamava-se Terezinha, e contou-lhe que tinha sido noiva de um rapaz, moço rico, a quem se entregou com amor e confiança, mas ele, entretanto, enganou-a, abandonando-a às vésperas do casamento.
Para resumir, Nagibão passou a viajar em seu barco com Terezinha, e levou-a para morar com ele, em sua casa, na rua Maceió, bairro de Vila Municipal, em Manaus. Numa noite, acordou depois de um sonho, em que uma voz dizia: “E o teu juramento no enterro de Lívia?”. Respondeu: “mas eu não casei com Terezinha; só estou amigado”. Simples assim, e a questão ficou resolvida.
Passaram-se dez anos. Nagibão e Terezinha viviam sob o mesmo teto, assumiram um relacionamento afetivo de forma pública, notória, contínua, respeitosa, frequentavam a casa de amigos e os recebiam em sua morada, formavam uma verdadeira família. Todos os requisitos do art. 1.723 do Código Civil – que define a união estável – estavam observados, atendidos. Diria o velho e bom Virgílio de Sá Pereira: todos viam ali uma família. Não tiveram filhos e Nagibão não comprou mais nenhum imóvel, satisfeito que estava com os muitos que já tinha e administrava.
Em 2003, com 58 anos de idade, Nagibão sofreu um enfarte e faleceu. Não tinha testamento, pois era supersticioso e achava que quem fazia testamento morria em seguida. O enterro atraiu muita gente. O falecido tinha um largo círculo de amigos. Terezinha estava desconsolada, chorava muito, era amparada pelas amigas. Mustafá, o melhor amigo do defunto, e que sempre recebera favores dele, vivendo praticamente às suas custas, passou-lhe o braço nas costas e dirigiu palavras de conforto. O enterro deu-se no cemitério de São João Batista. A sepultura está debaixo de uma mangueira, como ele queria.
Passada a Missa do 7º Dia, Terezinha estava resolvida a conversar com um advogado, pedir conselhos e perguntar como devia agir com relação ao patrimônio deixado pelo de cujus.
Nessa altura, um fato misterioso ocorreu: Mustafá, que desde a juventude e até então jamais tinha saído de Manaus, estava desaparecido. Ninguém dava notícias dele. Alguém disse que tinha partido para Belém. Outro garantiu tê-lo visto no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.
Na verdade, Mustafá havia obtido empréstimo num banco – já que não tinha mais o velho amigo que o sustentara a vida inteira -, comprou uma passagem de avião e foi para o Líbano, seguindo para sua cidade natal, Zahle. Não foi difícil localizar o amigo de infância, Salim, que, no primeiro momento nem o reconheceu. Já não se viam há décadas. Explicou, então, a razão de sua visita: convidava o amigo para ir ao Brasil, conhecer a Amazônia, visitar Manaus. Salim riu-se e disse: “Eu não tenho dinheiro nem para ir ali próximo, a Beirute, quanto mais para uma viagem tão longa”. Mustafá explicou, então, que todas as despesas seriam pagas por ele. Contou que Nagib havia morrido, deixado grande fortuna – uns quinze imóveis – e que ele, Salim, era o único herdeiro do falecido, como seu parente colateral mais próximo. Salim ainda argumentou: “mas eu não vi este meu primo desde que ele foi embora; nunca mandei ou recebi uma carta sequer; é um parente longínquo; quem é o louco que te disse que sou o único herdeiro dele?” Mustafá respondeu: “Quem diz é o próprio Código Civil brasileiro”, e completou: “não vamos perder tempo: tu assinas uma escritura me cedendo metade da herança de teu primo e vamos partir para o Brasil, buscar o que é nosso, de direito, que estamos muito ricos”.
E assim aconteceu. Assessorado pelo ladino Mustafá e por um experiente advogado, Salim apresentou-se em juízo, no Amazonas, mostrou documentos que provaram seu parentesco com o de cujus. Seu advogado, num elegante arrazoado, mostrou que todos os bens de Nagibão haviam sido comprados antes do início de sua união com Terezinha, e que nenhum deles tinha sido adquirido na vigência da união estável, razão pela qual a companheira sobrevivente não era meeira, nem, muito menos, tinha direito à herança. Considerando que o falecido não deixou descendentes, nem ascendentes, sendo o parente mais próximo, na linha colateral, de quarto grau, seu primo, Salim, requereu em nome deste a adjudicação de toda a herança, como único e universal herdeiro, tudo nos termos do art. 1.790, caput, do Código Civil.
Realmente, esse terrível art. 1.790, mal pensado e pessimamente inspirado, excluía a companheira da herança do companheiro morto, neste caso. Na sequência, Terezinha foi praticamente expulsa de casa, de “sua” casa, na qual vivia há tantos anos, ao lado do homem que a amava. Voltou a morar na sua terra querida, Manacapuru, onde trabalhava como costureira, sobrevivendo na pobreza, com toda a dignidade.
No direito brasileiro, desde a Lei Feliciano Pena, de 31 de dezembro de 1907, o cônjuge sobrevivente ocupa a terceira classe na ordem da sucessão legítima, afastando os colaterais. Esta boa solução foi mantida nos arts. 1.603 e 1.611 do Código Civil de 1916 e nos arts. 1.829 e 1.838 do Código Civil em vigor. Com o advento da Constituição de 1988, surgiu a Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que regulou o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão, estabelecendo, no art. 2º, III: “na falta de descendentes e de ascendentes, o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança”. Ou seja, os colaterais não concorriam com o companheiro sobrevivente, que excluía tais parentes da sucessão. Não havia tradição, clamor social, argumento jurídico, motivo ou razão para que o Código Civil de 2002 determinasse no art. 1.790 o grave retrocesso na sucessão dos companheiros.
Há um ditado popular que afirma: “não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe”. No dia 10 de maio de 2017, o Supremo Tribunal Federal – STF concluiu a votação do Recurso Extraordinário 878.694-MG, com repercussão geral, Relator Ministro Luís Roberto Barroso, e declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, que tratava da sucessão hereditária dos companheiros. O ilustre Ministro Barroso, em seu precioso voto, deu-me a honra de citar um trabalho que escrevi sobre o tema. Para efeito de repercussão geral, foi aprovada a seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no art. 1.829 do Código Civil”. Ou seja, a sucessão entre companheiros passa a ser regida pelas normas do Código Civil dirigidas à sucessão dos cônjuges. Esta decisão trará, sem dúvida, importantes consequências e desdobramentos no Direito das Famílias brasileiro, e simboliza mais um passo vigoroso para a equiparação entre casamento e união estável como formas de constituição de entidades familiares, com a mesma dignidade e respeito, baseadas na afetividade, seriedade, estabilidade, compromisso de constituição de família. No direito brasileiro, considerando a legislação e a jurisprudência, e quanto aos efeitos jurídicos, nada distingue ou separa, praticamente, a união estável do casamento. Se nosso querido Nagibão tivesse morrido mais tarde, depois daquela histórica decisão do STF, acima citada, Terezinha, sua companheira, ocuparia a terceira classe dos herdeiros legítimos, afastando os colaterais, e ficaria com toda a herança do falecido. Salim, o primo libanês, provavelmente, nem teria realizado a longa viagem desde Beirute; e, se a tivesse feito, sentiria o grande prazer de conhecer Manaus, a Amazônia, mas, do primo distante, que não via há várias décadas, não teria herdado nada e coisa alguma.
